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quinta-feira, 19 de abril de 2018

OS FERREIROS - Nelson de Faria


Os ferreiros

            Coisa estranha, aquela.

            Fizesse calor ou frio, fosse dia ou noite, manhã lavada em sol ou tarde que se afogasse em bruma e cinza, a “coisa” chegava, de mansinho, sem matinada ou leve arrepio que a denunciasse. Aproximava-se, zunindo baixinho, como se fosse aragem acariciando os ouvidos e os cabelos dele. De repente, estralejava com violência – T A M! – rachando-lhe os miolos ao meio. A primeira vez que lhe acontecera aquilo, lembrava-se, conversava na cozinha com a mulher, Siá Maricota – inté que se ria  pra ela, namorando-lhe as ancas gordas e os peitos fartos  - , a bagana apagada presa dos cacos de dentes encardidos. Agachara-se para pegar um graveto em brasa. Rápido, seco, o estalido soou: T A M!

            - Que coisa impossível! Cigarro e brasa foram atirados à distância. Siá Maricota olhou para ele, espantada, interrogando:

            - Que bicho te mordeu, criatura?

            O zunido sonoroso continuou nos ouvidos dele, que nem voo disparado de mangangá fugindo. Sem compreender o que lhe acontecera, temendo assustá-la, mentiu:

            - Nada não. Uma coisa assim, desgranida, repuxando os nervos da mão da gente, solevando os braços sem a gente querer. Uma gastura danada...

            Saiu, deixando a mulher em cismas. Desde então, quando se agachava, ouvia aquilo: - T A M! – Pernas e mãos fraquejavam, suor frio  porejava-lhe a raiz dos bigodes, escorria-lhe do canto da boca murcha, do cangote, descia-le pela suã, molhava-lhe a sovaqueira. Tudo tão rápido, tão sem sequência, que ele sentia vergonha de dizer que se amofinava. Ficou ensimesmado, começou a ter medo de sair sozinho, de ficar longe de casa. As carnes do corpo, que já eram poucas, minguaram mais. Desconfiava de tudo e de todos, olhava de viés, não encarava mais ninguém. Conversava pouco, sorria menos ainda.

            Uma tarde, depois da janta, proseavam os dois na varanda, com longos silêncios expectantes entre uma fala e outra. Siá Maricota descansava o bastidor de crivo sobre as coxas gordas, os dedos ágeis tecendo e enfeitando as aberturas simetricamente feitas no pano enfestado. Deco, enroscado na rede, o olhar tristonho perdido no azul cinzento do céu, pitava o cigarrinho de palha com ganas de esfomeado. Pousaram arapongas na jabuticabeira inçada de frutos ainda de-vez. Foi uma orgia. Numa esganação danada, os pássaros, de olhos vermelhos e cabeças esverdeadas, destroçaram tudo, inté frutas verdes e inchadas. Depois, de papos recheados, escancararam os gorgomilos rosados e foi aquela inferneira. Ele sentiu tonturas, angústia, cansaço. Pulou da rede, gritou, espantando os ferreiros:
            - Esbarra com isso, diabos! A gente não aguenta uma latomia assim... – Caiu sobre a rede, abaixou a cabeça dolorida, enfiou-a entre as mãos trêmulas, pôs-se a falar baixinho: - Igualzinho, Maricota, sem nem um porém, àquilo que estrala aqui dentro, machucando o bestunto da gente.

            Siá Maricota compreendeu, então, que algo de anormal acontecia ao marido. Disse, como se aconselhasse disfarçando a tristeza da voz a cabeça baixa e os olhos perdidos na tecedura do crivo:

             Se vosmecê quiser, mando buscar Sêo Candoca. Boquejam  que ele é bom para desmanchar coisa-feita, apertar parafuso desafrouxado da cabeça dos viventes. – Suspirou fundo, levantou a cabeça, olhou o marido com ternura, murmurou: - Porreteiro afamado, aquele um! Mando atrás dele, Deco, pra acabar com esse desadouro que amofina vosmecê.

            - Carece não, Maricota. Dilata mais um pouco. Isso passa...

            Quando os pássaros desatavam o seu cantar tinido, que nem martelos castigando bigornas, Deco fechava os olhos, arriava o corpo sobre o assento que encontrasse à mão, gesticulava, imprecava:

            - Os danados, outra vez, para não dar sossego aos miolos da gente!

            Um dia, por coincidência, quando Deco transpunha a soleira da porta, o estalo violento ocorreu juntamente com as pancadas do velho relógio dando horas. As últimas batidas estrondaram, fuxicando-lhe a cabeça. Parou, indeciso.

            - Bateu dez, Maricota?

            A voz da mulher veio de lá de dentro, da cozinha:

            - Nhor não, Deco, só contei nove.

            Diacho, inté parece que não sei mais contar! Trapalhada danada...

            Sorriu, meio contrafeito. Saiu, disfarçando o encalistramento, sentindo que a jeriza dele pelos ferreiros estava agora dividida entre os pássaros e o velho relógio de parede.

            NA CONSTÂNCIA das noites passadas em claro, adquiriu manhas, sutilezas de raciocínio para responder com evasivas ao que lhe perguntavam, fugir da cama sem que a mulher percebesse. Simulava dormir, ressonando, de boca aberta. Ficava desperto, imóvel. Percebendo que Siá Maricota dormia a sono solto, esgueirava-se, buscando o terreiro. Punha-se a contar as estrelas, os olhos em fogo, a pele arrepiada de frio, os cabelos úmidos de sereno. Ainda era manso, apesar da agitação das mãos e da inquietação do olhar.

            Na madrugada do tresvario, Deco recolhera-se cedo. Tranquilo nos gestos e no falar, olhou, sorrindo, para aqueles oitenta quilos de gorduras e bondades acumuladas no corpo de Siá Maricota, endereçou-lhe palavras carinhosas. Ela sorriu-lhe, bondadosa, alisando-lhe os cabelos raleiros, acomodando o corpo enorme sob os lençóis.

            - Tu viu passarim verde, bem?

            Deu-lhe as costas, a cara virada para a parede. Um quarto de hora depois, dormia.

            Deco teve sono plácido, acordou duas vezes somente no meio da noite. Passava por uma madorna, sentindo o corpo cansado de cama, quando ouviu, embrulhadas naquela semi-inconsciência que precede o despertar, as batidas sonoras do relógio. Contou as pancadas. Cinco. Levantou-se, saiu pisando na ponta dos pés, acendeu o bibiano, espiou o relógio. Os ponteiros marcavam quatro horas da madrugada. Ficou cismado. Apanhou o tolete de fumo de rolo, alisou a palha. Nervosamente, picou o bazé. Até nisso Siá Maricota notara a transformação por que passara o marido. De primeiro, ele era cuidadoso, selecionava fumo e palha. Agora, não. Palha enrugada, escura, feia, pedaços de bazé fedorento, que eram restolho, estavam sendo usados. Enrolado o cigarro, com dificuldade por via da tremura dos dedos, aproximou-se do fogão, soprou a cinza, atiçou os gravetos, pôs a ferver a chocolateira de folha-de-flandres. Coado o café, preparou a boca para o pito. Acalmou-se, ouviu, novamente, o relógio dando as horas. Contou-as:

            - Seis. Nossa, hora justa de se deixar a cama. Agorinha mesmo o danado bateu cinco...

            Ficou imerso em dúvidas. Teria o relógio batido cinco, ou foram seis? Correu a olhar. Enganara-se outra vez. O silêncio absorvera o som metálico da única pancada desferida pelos marteletes. Cismava, a cabeça latejando, sentindo arrepios pelo corpo todo:

            - Trem doido, coisa velha, ferrugenta. O diabo não marca certo as batidas que dá só pra fazer confusão no espírito da gente... Também, coitado, quando o velho Felisbino, meu avô, comprou ele de um cometa  baiano, foi que meu pai nasceu.

            Contou mentalmente: “Vinte... trinta e cinco... quarenta anos. Uai! Quarenta só, Deco? Quarenta e seis tenho eu. Quarenta e seis e meio, sô! Quarenta tem a Maricota, afora os três que ela viveu chupando nos ubres da velha Maria Nogueira, sua mãe. Mãe dela, que a pariu! Ora, e essa? Virge!  Que confusão danada, meu Deus! Sei contar mais não?” – Começava, parava, sentia aflição, não acertava a soma. Baralhava tudo. Olhou o relógio. Os números do mostrador começaram a dançar diante dos seus olhos. Dentro da cabeça dele também. No princípio, valsa lenta, quadrilha cadenciada, bem marcada por Sêo Jerônimo da Veredinha – “Êta sujeito despachado numa contradança! Marcador de respeito, nhor sim” – ao som da sanfona roufenha do Chico da Salu, sanfoneiro dos bons, que usava um anel grande, dos bitelos, no mindinho, para chamar a atenção das donzelas, virar a cabeça das desavergonhadas.

            Em seguida, o quadro mudava. A dança era outra. Os pares se agitavam. As pernas compridas do onze embaralhavam-se às saias rodadas do oito; a barriga volumosa do seis colidia com as barriguinhas atrevidas do três e do cinco, esbarravam nos palitos que formavam o quatro, empurrava ainda mais  pra riba a cabeça do nove; o sete, todo lorde, de colarinho engomado, olhava os outros com soberbia, como se fosse ele o dono da festa. O monóculo do dez desligou-se do companheiro, saltou fora do mostrador, zunindo que nem disco voador, e o um saiu rodopiando sozinho, tentando agarrar o dois, que deslizava sem par, parecendo patinho nadando... Houve uma pausa ligeira, e tudo mudou outra vez. Dançavam catira, polcavam, numa sarabanda infernal. Aí, a jeriza que nascera dentro dele foi aumentando, foi crescendo, crescendo... Os números do mostrador começaram a rir. Gargalhavam, gritavam, cantavam, sapateando dentro de sua cabeça dolorida. Angustiado, torceu a tramela da porta, respirou o ar leve e puro da madrugada. Foi ao rêgo, agachou-se para lavar a cara. Sentiu, então, as pancadas metálicas tinindo bem no fundo do fundo da mioleira; tão violentas que afocinhou, como se uma porretada lhe alcançasse a nuca. Vagarosamente, soergueu o corpo, ajoelhou-se. Fechou os olhos, que faiscavam, enfiou as mãos na água fria, molhou a cabeça, os braços, o rosto. Tateou os cabelos molhados com a ponta dos dedos trementes, procurando localizar o ponto certo das marteladas. Amolegou  as bochechas, percebendo que elas tremiam, subindo e abaixando, sem que ele quisesse. Levantou-se, desalentado. Escutou: vinham de longe, de muito longe, aumentando sempre de volume, tomando conta dos ouvidos dele, zunidos e assobios, gritos e gargalhadas. Os martelos começaram a bater... a bater... Às tontas, zanzando, as mãos crispadas, os pés dormentes se arrastando, o fôlego curto, alcançou a casa, chegou ao quarto. Babatando na escuridão, abriu o gavetão da cômoda sem fazer ruído, agarrou a fogo-central.

            Ouvia o relógio soando horas sem parar, os pássaros martelando bigornas... Retornou, pisando em algodão. Desconfiado, olhou o relógio, com raiva e decisão. Súbito, ao clarão fulgurante, ao estampido seco, ao barulho de vidro quebrado, sucedeu breve silêncio, pesado, inquietante. Depois, foi o pandemônio. Ferido de morte, o velho relógio despregou-se da parede e, espatifou-se no chão atijolado, gritando horas pela boca enferrujada de todas as engrenagens entornadas pela sala.

            Cacarejavam galinhas nos poleiros; latiam e uivavam cachorros no terreiro; Siá Maricota, ajoelhada diante do oratório, rezava e chorava; no curral berravam e mugiam vacas e bezerros. Estralejavam as marteladas estridentes das arapongas no capão do fundo da horta. Dentro dos miolos de Deco, repercutiam as frenéticas marteladas dos ferreiros... O sol insinuou a grande cara esbranquiçada por entre fiapos de nuvens, enveredou casa adentro pela abertura da porta, parou, para machucar os olhos de Sêo Deco dos Angicos. Ria-se, debochando, daquele olhar esgazeado e encalcava uma luz fria e branquela pra dentro da cabeça dele, que nem sovela perfurando lonca, inté deixar o pobre azucrinado de todo. E, não satisfeito com a maldade que praticava, também ele, o sol, como o velho relógio – imenso relógio desregrado – começou a gritar, a badalar, que nem sino anunciando defunto. Sêo Deco levou a pistola à frente, mirou o sol branco e frio que rompia morros e nuvens, deu ao gatilho:

            - Toma, tu também, desgraçado! Vai martelar a cabeça da mãe, diabo!

(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)
Nelson de Faria
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O escritor NELSON DE FARIA
Julgado pela crítica brasileira:

      “Legítimo contador de estórias, para isso equipado não somente com vívida, movimentada e variada temática, mas, também com os recursos de composição que lhe dão foros de verdadeiro escritor, Nelson de Faria tem tudo, para merecer aplausos do público e da crítica. Tudo nele nos provoca profunda simpatia: a legítima vocação de escritor que só agora, consciente do seu trabalho lento, mas seguro,  no sentido da realização, permite-se aparecer em livro; o sentimento grave da terra e do homem que vive em função dela; o modo, a forma, de contar suas estórias.”
(Leonardo Arroyo)

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