Os ferreiros
Coisa
estranha, aquela.
Fizesse
calor ou frio, fosse dia ou noite, manhã lavada em sol ou tarde que se afogasse
em bruma e cinza, a “coisa” chegava, de mansinho, sem matinada ou leve arrepio
que a denunciasse. Aproximava-se, zunindo baixinho, como se fosse aragem acariciando
os ouvidos e os cabelos dele. De repente, estralejava com violência – T A M! –
rachando-lhe os miolos ao meio. A primeira vez que lhe acontecera aquilo,
lembrava-se, conversava na cozinha com a mulher, Siá Maricota – inté que se
ria pra ela, namorando-lhe as ancas
gordas e os peitos fartos - , a bagana
apagada presa dos cacos de dentes encardidos. Agachara-se para pegar um graveto
em brasa. Rápido, seco, o estalido soou: T A M!
- Que
coisa impossível! Cigarro e brasa foram atirados à distância. Siá Maricota
olhou para ele, espantada, interrogando:
- Que
bicho te mordeu, criatura?
O zunido
sonoroso continuou nos ouvidos dele, que nem voo disparado de mangangá fugindo.
Sem compreender o que lhe acontecera, temendo assustá-la, mentiu:
- Nada
não. Uma coisa assim, desgranida, repuxando os nervos da mão da gente,
solevando os braços sem a gente querer. Uma gastura danada...
Saiu,
deixando a mulher em cismas. Desde então, quando se agachava, ouvia aquilo: - T
A M! – Pernas e mãos fraquejavam, suor frio
porejava-lhe a raiz dos bigodes, escorria-lhe do canto da boca murcha,
do cangote, descia-le pela suã, molhava-lhe a sovaqueira. Tudo tão rápido, tão
sem sequência, que ele sentia vergonha de dizer que se amofinava. Ficou
ensimesmado, começou a ter medo de sair sozinho, de ficar longe de casa. As
carnes do corpo, que já eram poucas, minguaram mais. Desconfiava de tudo e de
todos, olhava de viés, não encarava mais ninguém. Conversava pouco, sorria
menos ainda.
Uma tarde,
depois da janta, proseavam os dois na varanda, com longos silêncios expectantes
entre uma fala e outra. Siá Maricota descansava o bastidor de crivo sobre as
coxas gordas, os dedos ágeis tecendo e enfeitando as aberturas simetricamente
feitas no pano enfestado. Deco, enroscado na rede, o olhar tristonho perdido no
azul cinzento do céu, pitava o cigarrinho de palha com ganas de esfomeado.
Pousaram arapongas na jabuticabeira inçada de frutos ainda de-vez. Foi uma
orgia. Numa esganação danada, os pássaros, de olhos vermelhos e cabeças
esverdeadas, destroçaram tudo, inté frutas verdes e inchadas. Depois, de papos
recheados, escancararam os gorgomilos rosados e foi aquela inferneira. Ele
sentiu tonturas, angústia, cansaço. Pulou da rede, gritou, espantando os
ferreiros:
- Esbarra
com isso, diabos! A gente não aguenta uma latomia assim... – Caiu sobre a rede,
abaixou a cabeça dolorida, enfiou-a entre as mãos trêmulas, pôs-se a falar
baixinho: - Igualzinho, Maricota, sem nem um porém, àquilo que estrala aqui
dentro, machucando o bestunto da gente.
Siá
Maricota compreendeu, então, que algo de anormal acontecia ao marido. Disse,
como se aconselhasse disfarçando a tristeza da voz a cabeça baixa e os olhos
perdidos na tecedura do crivo:
Se
vosmecê quiser, mando buscar Sêo Candoca. Boquejam que ele é bom para desmanchar coisa-feita,
apertar parafuso desafrouxado da cabeça dos viventes. – Suspirou fundo,
levantou a cabeça, olhou o marido com ternura, murmurou: - Porreteiro afamado,
aquele um! Mando atrás dele, Deco, pra acabar com esse desadouro que amofina
vosmecê.
- Carece
não, Maricota. Dilata mais um pouco. Isso passa...
Quando os
pássaros desatavam o seu cantar tinido, que nem martelos castigando bigornas,
Deco fechava os olhos, arriava o corpo sobre o assento que encontrasse à mão,
gesticulava, imprecava:
- Os
danados, outra vez, para não dar sossego aos miolos da gente!
Um dia,
por coincidência, quando Deco transpunha a soleira da porta, o estalo violento
ocorreu juntamente com as pancadas do velho relógio dando horas. As últimas
batidas estrondaram, fuxicando-lhe a cabeça. Parou, indeciso.
- Bateu
dez, Maricota?
A voz da
mulher veio de lá de dentro, da cozinha:
- Nhor
não, Deco, só contei nove.
Diacho,
inté parece que não sei mais contar! Trapalhada danada...
Sorriu,
meio contrafeito. Saiu, disfarçando o encalistramento, sentindo que a jeriza
dele pelos ferreiros estava agora dividida entre os pássaros e o velho relógio
de parede.
NA
CONSTÂNCIA das noites passadas em claro, adquiriu manhas, sutilezas de
raciocínio para responder com evasivas ao que lhe perguntavam, fugir da cama
sem que a mulher percebesse. Simulava dormir, ressonando, de boca aberta.
Ficava desperto, imóvel. Percebendo que Siá Maricota dormia a sono solto,
esgueirava-se, buscando o terreiro. Punha-se a contar as estrelas, os olhos em
fogo, a pele arrepiada de frio, os cabelos úmidos de sereno. Ainda era manso,
apesar da agitação das mãos e da inquietação do olhar.
Na
madrugada do tresvario, Deco recolhera-se cedo. Tranquilo nos gestos e no
falar, olhou, sorrindo, para aqueles oitenta quilos de gorduras e bondades
acumuladas no corpo de Siá Maricota, endereçou-lhe palavras carinhosas. Ela
sorriu-lhe, bondadosa, alisando-lhe os cabelos raleiros, acomodando o corpo
enorme sob os lençóis.
- Tu viu passarim
verde, bem?
Deu-lhe as
costas, a cara virada para a parede. Um quarto de hora depois, dormia.
Deco teve
sono plácido, acordou duas vezes somente no meio da noite. Passava por uma
madorna, sentindo o corpo cansado de cama, quando ouviu, embrulhadas naquela
semi-inconsciência que precede o despertar, as batidas sonoras do relógio.
Contou as pancadas. Cinco. Levantou-se, saiu pisando na ponta dos pés, acendeu
o bibiano, espiou o relógio. Os ponteiros marcavam quatro horas da madrugada.
Ficou cismado. Apanhou o tolete de fumo de rolo, alisou a palha. Nervosamente,
picou o bazé. Até nisso Siá Maricota notara a transformação por que passara o
marido. De primeiro, ele era cuidadoso, selecionava fumo e palha. Agora, não.
Palha enrugada, escura, feia, pedaços de bazé fedorento, que eram restolho,
estavam sendo usados. Enrolado o cigarro, com dificuldade por via da tremura
dos dedos, aproximou-se do fogão, soprou a cinza, atiçou os gravetos, pôs a
ferver a chocolateira de folha-de-flandres. Coado o café, preparou a boca para
o pito. Acalmou-se, ouviu, novamente, o relógio dando as horas. Contou-as:
- Seis.
Nossa, hora justa de se deixar a cama. Agorinha mesmo o danado bateu cinco...
Ficou
imerso em dúvidas. Teria o relógio batido cinco, ou foram seis? Correu a olhar.
Enganara-se outra vez. O silêncio absorvera o som metálico da única pancada
desferida pelos marteletes. Cismava, a cabeça latejando, sentindo arrepios pelo
corpo todo:
- Trem
doido, coisa velha, ferrugenta. O diabo não marca certo as batidas que dá só
pra fazer confusão no espírito da gente... Também, coitado, quando o velho
Felisbino, meu avô, comprou ele de um cometa
baiano, foi que meu pai nasceu.
Contou
mentalmente: “Vinte... trinta e cinco... quarenta anos. Uai! Quarenta só, Deco?
Quarenta e seis tenho eu. Quarenta e seis e meio, sô! Quarenta tem a Maricota,
afora os três que ela viveu chupando nos ubres da velha Maria Nogueira, sua
mãe. Mãe dela, que a pariu! Ora, e essa? Virge!
Que confusão danada, meu Deus! Sei contar mais não?” – Começava, parava,
sentia aflição, não acertava a soma. Baralhava tudo. Olhou o relógio. Os
números do mostrador começaram a dançar diante dos seus olhos. Dentro da cabeça
dele também. No princípio, valsa lenta, quadrilha cadenciada, bem marcada por
Sêo Jerônimo da Veredinha – “Êta sujeito despachado numa contradança! Marcador
de respeito, nhor sim” – ao som da sanfona roufenha do Chico da Salu, sanfoneiro
dos bons, que usava um anel grande, dos bitelos, no mindinho, para chamar a
atenção das donzelas, virar a cabeça das desavergonhadas.
Em
seguida, o quadro mudava. A dança era outra. Os pares se agitavam. As pernas
compridas do onze embaralhavam-se às saias rodadas do oito; a barriga volumosa
do seis colidia com as barriguinhas atrevidas do três e do cinco, esbarravam
nos palitos que formavam o quatro, empurrava ainda mais pra riba a cabeça do nove; o sete, todo
lorde, de colarinho engomado, olhava os outros com soberbia, como se fosse ele
o dono da festa. O monóculo do dez desligou-se do companheiro, saltou fora do
mostrador, zunindo que nem disco voador, e o um saiu rodopiando sozinho,
tentando agarrar o dois, que deslizava sem par, parecendo patinho nadando...
Houve uma pausa ligeira, e tudo mudou outra vez. Dançavam catira, polcavam,
numa sarabanda infernal. Aí, a jeriza que nascera dentro dele foi aumentando,
foi crescendo, crescendo... Os números do mostrador começaram a rir.
Gargalhavam, gritavam, cantavam, sapateando dentro de sua cabeça dolorida.
Angustiado, torceu a tramela da porta, respirou o ar leve e puro da madrugada.
Foi ao rêgo, agachou-se para lavar a cara. Sentiu, então, as pancadas metálicas
tinindo bem no fundo do fundo da mioleira; tão violentas que afocinhou, como se
uma porretada lhe alcançasse a nuca. Vagarosamente, soergueu o corpo,
ajoelhou-se. Fechou os olhos, que faiscavam, enfiou as mãos na água fria,
molhou a cabeça, os braços, o rosto. Tateou os cabelos molhados com a ponta dos
dedos trementes, procurando localizar o ponto certo das marteladas.
Amolegou as bochechas, percebendo que
elas tremiam, subindo e abaixando, sem que ele quisesse. Levantou-se,
desalentado. Escutou: vinham de longe, de muito longe, aumentando sempre de
volume, tomando conta dos ouvidos dele, zunidos e assobios, gritos e
gargalhadas. Os martelos começaram a bater... a bater... Às tontas, zanzando,
as mãos crispadas, os pés dormentes se arrastando, o fôlego curto, alcançou a
casa, chegou ao quarto. Babatando na escuridão, abriu o gavetão da cômoda sem
fazer ruído, agarrou a fogo-central.
Ouvia o
relógio soando horas sem parar, os pássaros martelando bigornas... Retornou,
pisando em algodão. Desconfiado, olhou o relógio, com raiva e decisão. Súbito,
ao clarão fulgurante, ao estampido seco, ao barulho de vidro quebrado, sucedeu
breve silêncio, pesado, inquietante. Depois, foi o pandemônio. Ferido de morte,
o velho relógio despregou-se da parede e, espatifou-se no chão atijolado,
gritando horas pela boca enferrujada de todas as engrenagens entornadas pela
sala.
Cacarejavam galinhas nos poleiros; latiam e uivavam cachorros no
terreiro; Siá Maricota, ajoelhada diante do oratório, rezava e chorava; no
curral berravam e mugiam vacas e bezerros. Estralejavam as marteladas
estridentes das arapongas no capão do fundo da horta. Dentro dos miolos de
Deco, repercutiam as frenéticas marteladas dos ferreiros... O sol insinuou a
grande cara esbranquiçada por entre fiapos de nuvens, enveredou casa adentro
pela abertura da porta, parou, para machucar os olhos de Sêo Deco dos Angicos.
Ria-se, debochando, daquele olhar esgazeado e encalcava uma luz fria e
branquela pra dentro da cabeça dele, que nem sovela perfurando lonca, inté
deixar o pobre azucrinado de todo. E, não satisfeito com a maldade que
praticava, também ele, o sol, como o velho relógio – imenso relógio desregrado
– começou a gritar, a badalar, que nem sino anunciando defunto. Sêo Deco levou
a pistola à frente, mirou o sol branco e frio que rompia morros e nuvens, deu
ao gatilho:
- Toma, tu
também, desgraçado! Vai martelar a cabeça da mãe, diabo!
(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)
Nelson de Faria
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O escritor NELSON DE FARIA
Julgado pela crítica brasileira:
“Legítimo
contador de estórias, para isso equipado não somente com vívida, movimentada e
variada temática, mas, também com os recursos de composição que lhe dão foros
de verdadeiro escritor, Nelson de Faria tem tudo, para merecer aplausos do
público e da crítica. Tudo nele nos provoca profunda simpatia: a legítima
vocação de escritor que só agora, consciente do seu trabalho lento, mas seguro,
no sentido da realização, permite-se
aparecer em livro; o sentimento grave da terra e do homem que vive em função
dela; o modo, a forma, de contar suas estórias.”
(Leonardo Arroyo)
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