A Rua
Paulino Vieira mudou muito no seu aspecto com o passar dos anos. Continuando
estreita e movimentada, teve, no entanto,
as fachadas de suas casas totalmente remodeladas, calçamento de pedra
substituído por asfalto, fundos de casas transformados em lojas e, ultimamente,
os passeios uniformizados. Ela já foi preferencialmente uma rua de residências,
mas sem nunca deixar de ter movimento comercial. Antigamente, porém, o seu
comércio era de feirantes, verdureiros e vendedores outros, que por ela
passavam com suas mercadorias, oferecendo-as nas casas de família ou em direção
à feira, nos dias de sábado. Por ela passavam também mercadores de carnes nos
tabuleiros, carvoeiros, aguadeiros, leiteiros, padeiros, mascates e outros
vendedores.
Senhores
importantes a palmilhavam diariamente, pois tinham ali suas residências.
Por
ocasião da safra do cacau, uma parte do seu trecho era tomada por uma grande
tropa carregada de sacos do precioso produto, que era despejado num grande
armazém do rico cacauicultor Oscar Marinho, também ali residente. A chegada da
tropa na rua era uma festa para os meninos. Todos corriam para vê-la. A tropa
era enorme. Os animais entravam na rua com a madrinha à frente, uma besta toda
enfeitada de fitas de várias cores e um peitoral de metal reluzente tilintando
pequenos sinos, indicando o caminho aos outros animais. Os tropeiros, ágeis e
suarentos, iam logo descarregando os animais e transportando na cabeça os sacos
para dentro do armazém, entulhando-o com a preciosa carga. Não havia empecilho
para o trânsito de carros, pois esses ainda eram poucos na cidade.
As casas
da Paulino Vieira foram mudando com o tempo, as suas fachadas transformadas em
vitrinas de lojas e butiques elegantes. Os feirantes e mercadores mudaram de
caminho, pois as famílias foram saindo com a invasão das lojas. Nessa mudança
para um comércio modernizado, algumas casas velhas foram demolidas para ceder
lugar a novos prédios. No meio dessas demolições, lá se foi um sobradinho
estreito, de um andar, que possuía no térreo um modesto restaurante, sempre
aberto aos passantes. Em seu lugar foi erguido, anos depois, um prédio
revestido de mármore, para funcionamento do Banco da Bahia, uma esquina entre a
Paulino Vieira e a Avenida do Cinquentenário.
Nesta rua
eu, ainda bem menina, no primeiro ano primário, vinha do colégio trazendo na
mão uma pasta com os livros e cadernos, após as aulas da manhã. O passeio do
pequeno sobrado era o meu caminho diário. Vinha atenta às ordens de não parar
no caminho, quando deparei um pequeno grupo de pessoas, talvez empregados ou
comensais da pensão, fazendo um certo alvoroço com muitas risadas em torno de
um amontoado de pequeninos bichos que se mexiam sem sair do lugar sobre o
passeio. Aquilo despertou minha curiosidade que me deteve para perguntar que
bichos eram aqueles que eu nunca tinha visto.
- São filhos de leão! -, respondeu alguém entre
risadas.
- Filhotes
de leão? -, perguntei maravilhada.
- Sim.
Quer levar os três?
- O senhor
me dá?
Já tinha
visto leões no circo e nos livros, todos grandes, os pequeninos assim,
miudinhos, nunca.
Que coisa
linda criar três leõezinhos, logo imaginei, brincar com eles e, quando
estivessem mais crescidos, mansinhos, andar com eles em casa como se fossem
três cachorrinhos! Era bom demais.
A turma
toda olhou para mim e, divertido, um dos homens disse: leve os três.
Sem ter
ideia do que fazia, pois só pensava no brinquedo que iam ser, prontamente, sem
nojo, os peguei e os coloquei dentro da pasta, no meio dos cadernos, na maior
alegria. Parti para casa feliz, mas logo caí em mim. E meus pais iam deixar que
eu ficasse com aquele presente? Como iriam eles receber a novidade? O mais
prudente era mostrar depois do almoço,
quando tudo estava mais calmo. Enquanto isso, era preciso guardar os três
bichinhos até o momento que achasse bom. Mas onde guardar? Estava difícil
encontrar um lugar onde ninguém descobrisse. Mas onde? Almocei quieta, dando
tratos à bola. De repente, a ideia chegou. Já sei! Na gaveta do criado-mudo de
minha mãe, peça colocada a um canto do quarto onde ela pouco mexia. Terminado o
almoço, corri para a pasta escolar, peguei os bichinhos e os coloquei dentro da
gaveta. E agora? Fiquei pensando, como alimentá-los? O que iriam eles comer?
Valia a pena todo cuidado porque ficariam lindos quando crescessem mansinhos e
eu pudesse brincar com eles.
Fiquei sem
entender o porquê do inesperado. Como pôde acontecer aquela coisa horrível que
eu jamais pensara? Estava tudo calmo, eu esperando que meu pai saísse às duas
horas, como fazia sempre, e minha mãe se ocupasse com alguma coisa, para eu
poder, tranquilamente, olhar os meus três leõezinhos.
Aguardava
pacientemente a grande oportunidade, quando ouvi um grito partindo do quarto de
minha mãe, a sua voz alterada, a chegada de uma empregada e uma enorme
confusão. Três ratinhos recém-nascidos tinham sido encontrados. Como apareceram
ali dentro daquela gaveta? Procurei me esconder, mas fui chamada às falas. Acho
que a minha cara me denunciou ou alguma atitude suspeita me traiu. O certo é
que o meu pai, que ainda não tinha saído, foi convocado, as empregadas se
juntaram e eu, na maior vergonha de uma confissão pública, diante do
interrogatório a que me submeteram, desembuchei toda a história. Como podia uma
menina crescida, na escola, trocar filhos de ratos por leões, pegar naquela
porcaria, receber coisas das mãos de estranhos, parar na rua desobedecendo
ordens e trazer presente escondido para casa? Foi um rosário de culpas que
minha mãe desfiou para mim, além de me mostrar o seu chinelo que iria funcionar
na primeira ocasião que eu aprontasse outra armação.
Além do
conhecido chinelo, minha mãe tinha com frequência à mão, uma sola larga que ela
mandava buscar na sapataria de seu Zé Gomes, que ficava perto de casa. Não
adiantava eu dar sumiço na malfadada sola, porque seu Zé Gomes renovava sempre
os pedidos feitos. Ele já sabia qual a finalidade, e parecia a mim que ele
tinha prazer em atender os pedidos de minha mãe, pois nunca recusava. Por isso
eu o odiava. A sola não funcionava realmente, mas intimidava com a presença.
Passaram-se os anos. Eu, adulta, formada. Um dia fui convidada por seu
Zé Gomes para ser madrinha de batismo de sua filha caçula. Aceitei o convite
com muito prazer, com estima. Tornamo-nos compadres e eu já então agradecida,
porque talvez as solas que ele forneceu tenham ajudado um bocado na eficiente
pedagogia de minha mãe.
Essa
história dos ratos, além da decepção que me causou pelo logro em que caí, me
ficou na lembrança e me faz recordá-la, sempre que passo pelo fundo do antigo
Banco da Bahia, no passeio da Paulino Vieira. Parece que vejo gravado na parede
de mármore branco: Por aqui passou um dia uma menina boba.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora
de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação
Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade
de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
Conhecida professora itabunense, filha do Dr. Lafayette
Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’,
livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso
despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de
Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são
estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a
história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que
crê no homem e na terra’.
(Cyro de Mattos)
* * *
hummm texto incrível sobre meu shopping preferido ( é como eu mentalmente me refiro a rua paulino vieira rsrsrsr )
ResponderExcluirrsrrsrs ah eu tbm odiaria esse sapateiro rsrsrrs
ResponderExcluirmas pensei aqui: sera q eram ratinhos mesmo ou eram preás? safadelho esse homem de enganar assim uma criancinha tao inocente viu!!!