O velório de um rio
Ele vem de longe. Nasce em outras plagas, ao pé de
uma serra no Município de Vitória da Conquista. Vem magrinho. Começa a crescer
depois de alimentado pelo seu afluente rio Salgado. Torna-se forte, passando a
ser chamado Colônia em grande parte do seu trajeto, e depois, Cachoeira.
Como rio Cachoeira, ele atravessa a
cidade de Itabuna. Apesar do seu nome, as suas águas são tranqüilas, correndo
calmamente em busca do seu destino, o oceano azul, onde se lança num abraço
discreto, sem grandes cenas, até desfazer-se nas profundezas do abismo marinho.
A sua paisagem nem sempre foi a mesma da atual; o tempo, as enchentes, o
trabalho do homem a modificaram em parte. Há tempos recuados, pequenas ilhas
cobertas de arbustos enfeitavam a sua superfície, bem como grandes lajedos
escuros que emergiam para quebrar o monótono branco das águas.
Formador de civilização, o Cachoeira indicou aos pioneiros o caminho das terras
férteis, serviu-lhes de guia e até de estrada. Ao seu redor, surgiram povoados.
A primeira casa do então futuro arraial de Tabocas e as primeiras lavouras de
subsistência surgiram nas suas margens. Mais tarde, grandes fazendas de
pecuária com extensas e férteis pastagens foram sendo formadas em terras por
ele generosamente banhadas. Do primeiro arraial de Tabocas, nascido às suas
margens, resultou uma grande cidade, hoje embelezada pela sua paisagem de
pontes e luzes.
Mas o calmo Cachoeira vez por outra fez explodir o seu ímpeto selvagem em
demonstrações de força e poder de destruição, desafiando os que habitam nas
suas imediações. Num furor inesperado, já invadiu casas, lojas, ruas,
carregando de roldão tudo o que encontrava. Já chegou a causar estragos
enormes, já matou. Nas suas explosões de violência, quem ousava mergulhar no
turbilhão de suas águas? Ficava preso nas garras dos seus “sumidouros”. Quando
enfurecido, expandindo a sua força, qual o nadador que ousava desafiá-lo? Seria
vencido irremediavelmente.
A adversidade chegou um dia ao Cachoeira, quando as nuvens suspenderam a sua
colaboração, chuvas deixaram de cair na sua cabeceira, o homem devastou as suas
margens, areeiros mudaram-lhe o perfil, plantas aquáticas obstruíram o seu
curso.
Nessas tragédias, o rio ficou só, entregue à própria sorte. E hoje está ele aí,
doente, moribundo, vendo os seus peixes morrendo, plantas aquáticas, as
baronesas tirando-lhe a respiração, sufocando-o, dando-lhe uma morte lenta,
penosa, sem que os homens a quem tanto serviu e serve dele se apiedem. As
pedras que se escondiam em suas entranhas, agora estão expostas ao sol; suas
águas já não correm livres para o mar, seu destino: estão paradas e lodosas,
exalando miasmas. Rio amado, rio desprezado. As lavadeiras já não o procuram
mais. Os antigos banhos de folguedo que foram a alegria da meninada acabaram;
ele hoje é olhado como um doente contagioso.
A tristeza do Cachoeira comove. E hoje, quando passo por ele e o vejo tão
doente, tão triste e abandonado, sinto o mesmo confrangimento de quem vê um
amigo em agonia. A sua companhia hoje são os bandos de garças alvas e
tristonhas pousadas nos seus lajedos, parecendo fazer o seu velório, enquanto baronesas
em profusão, qual coroas mortuárias, completam o quadro fúnebre.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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