Uma fábula do cerrado para quem tem bom coração.
O viajante de bom coração leva consigo pouca bagagem. Sabe
que cada vez que pisa em solo novo, sua alma se mistura à paisagem. Tornando-se
uma coisa só, é muito mais fácil viver. Foi isso que aconteceu quando chegou ao
cerrado. De repente, seus olhos viraram lua, seus pés viraram mato e o sangue
de suas veias começou a cantar baixinho um canto de cachoeira com voz de
passarinho.
O viajante logo percebeu que aquela terra era diferente.
Ali, o mar virava céu e o céu virava mar. Era preciso estar atento para
enxergar, mudar de perspectiva, virar de ponta cabeça.
Sem medo, resolveu experimentar.
E viu suas pernas virarem árvores que, contorcidas, dançavam um balé suave. O
viajante dançou a noite inteira. Quando a manhã chegou, cansado, adormeceu.
Acordou recebendo um beijo nos lábios de um bichinho que o
olhava intrigado. Quem é você, perguntou? Sou o calango do cerrado, moro aqui,
moro acolá, sou dono desse lugar. O viajante de bom coração faz amigos pelo
caminho. Quando perceberam, os dois já estavam rindo, lembrando das histórias
do Tamanduá. Um dia, ele também havia vivido por lá, mas quase extinto,
levantou a bandeira e já não voltava para visitar. O mesmo aconteceu com o Lobo
Guará. E coração do calango doeu de saudade.
Decidiram, então, sacudir a poeira. Haviam conversado a
manhã inteira e já era hora de almoçar. O calango, animado, decidiu cozinhar. E
em pouco tempo, um aroma diferente pairava no ar. O que é isso, perguntou o
viajante? É pequi, vem provar! Só não pode morder, é melhor raspar. Almoço bom
que é danado. Sobremesa, tem? Tem os frutos do cerrado, coisa melhor não há. Tem
Baru, Cagaita, Araticum, Mama-Cadela para os males curar.
O viajante, que iria embora em poucos dias, resolveu ficar.
Estava apaixonado por aquelas terras, queria aproveitar.
Então, os meses se
passaram. Aos poucos, a chuva foi cessando e o sol rachou de brilhar. Sem cair
água do céu, viu o cerrado secar. Sendo ele e sua paisagem uma coisa só, a sede
daquele chão na sua garganta dava um nó.
Viu o verde virar tinta e o fogo pintar de cinza o que a
terra tinha a oferecer. O que estaria acontecendo? Viu tanto bicho correr. Pela
primeira vez, o viajante teve medo de morrer.
Mas o cerrado, encantado, não
desiste de surpreender.
Quando menos esperava e achou que a vida acabava, virou
Ipê!
* Este conto participou do I Concurso Literário de
Sustentabilidade do Cerrado Brasileiro.
Nós moramos mesmo é nas entrelinhas,
no silêncio dos intervalos. Somos feitos de uma voz que grita e uma voz que
cala. Como música! A magia não está no que se ouve, mas no exato instante da
pausa
* * *
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