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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

NEM TÃO SIMPLES - Ana Maria Machado

Nem tão simples

"Simples assim. Entendeu ou quer que eu desenhe?”

A toda hora estamos esbarrando em variantes dessa atitude arrogante, seja em comentários na internet ou em palpites que surgem em conversas ao vivo, com a pretensão de calar o outro. Por vezes, vem revestida de um tom teórico peremptório, cheio de ecos intelectuais, a insinuar que qualquer discordância é estúpida. Nem por isso deixa de ser uma forma de ofensa, a chamar o outro de burro.

No entanto, o que a história do pensamento nos mostra é bem diferente. Sempre foi um trajeto calcado em dúvidas e hesitações, por mais que o processo da busca do conhecimento se faça com certa teimosia e algumas raras certezas muito bem focadas — de que Galileo é um bom exemplo. Mas a honestidade que marca a ânsia de saber convive com a admissão das inseguranças que abrem portas, desde o axioma socrático do “só sei que nada sei”, passando pela dúvida metódica cartesiana, até os princípios da complexidade que Edgar Morin aponta ao sublinhar as incertezas que caracterizam nosso tempo.

Neste momento em que os eleitores brasileiros sentem a necessidade de analisar a nossa atual crise com algum exame que vá além da superfície imediata, pode valer a pena lembrar que nada é “simples assim”. Não dá para resumir num mero desenho. Mas convém admitir que grande parte do retrocesso que aí está a nos assombrar é fruto de uma complexa conivência da nossa sociedade. A tal omissão dos bons que permite a expansão do crime e da injustiça. Às vezes por comodismo, às vezes por simplismo, às vezes por recusa a admitir o próprio engano. E como fomos enganados...

Votando em Lula, Dilma, Aécio, Cabral, Cunha ou Renan, e tantos outros, fomos engambelados por belas palavras, fartas promessas e bom mocismo. Como se tudo fosse simples assim. Só que não é. Convém não esquecer. É preciso admitir que fomos traídos. Transformar o arrependimento em alguma sabedoria. Aprender com os erros, para não repeti-los. Ao menos, tentando escolher melhor o futuro Congresso.

Não que a sociedade tenha ficado apática e de braços cruzados. Movimentos sociais se organizaram e reivindicaram. Manifestos e abaixo-assinados se espalharam pela internet. Conseguiram gerar fatos concretos e positivos, como a Lei da Ficha Limpa. Ou sugerir as Dez Medidas contra a Corrupção.

Mas agora se assiste a um retrocesso que tem como objetivo atrapalhar toda e qualquer melhoria nessa área. E em outras.

O fato de não se fazer uma reforma eleitoral tem muito a ver com isso. Continua havendo uma proliferação de partidos que seria cômica se não fosse trágica — mas que é muito eficiente em atrapalhar a governabilidade e estimular esse abominável balcão de negócios no Congresso. Os exemplos se multiplicam.

A análise racional mostra que é indispensável para as futuras gerações que se faça já a reforma da Previdência, cujo desequilíbrio paralisa investimentos em saúde, educação, saneamento. No entanto, aí estão os políticos barganhando e impedindo que ela se faça, mesmo reduzida, desvirtuada e insuficiente.

Em outro âmbito, a recusa em fazer a reforma eleitoral (tanto no Legislativo quanto no Judiciário) prorroga a existência desordenada de partidos e ameaça recuos na Lei da Ficha Limpa ou na determinação do STF de que a pena comece a ser cumprida após decisão em segunda instância. E continuamos sujeitos a esse Congresso tecido de políticos corruptos, incapaz de dar um mínimo passinho à frente que faça avançar alguns milímetros.

A isenção fiscal para igrejas resulta em bancadas religiosas retrógradas que esgrimem argumentos autoritários para impor à nação atitudes e comportamentos medievais. A degradação pública e o opróbrio são amplamente utilizados nos linchamentos morais a que assistimos a todo momento. Já chegamos ao ponto de literalmente queimar bruxas — ainda que por enquanto nos limitando ao simbolismo de bonecos que as representem, como se viu no caso da filósofa Judith Butler. Mas nem sempre é só simbólico: a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi linchada até a morte no Guarujá a partir de uma falsa acusação, na internet, de sequestrar crianças para magia negra. Uniu-se a reles mentira com a sanha de condenar sem apurar. Males atuais.

Tudo isso desvia da justiça necessária. Vemos todo dia as tentativas de retrocesso que impedem a punição de culpados de corrupção, na Lava-Jato ou fora dela. Vale tudo, a começar pela manutenção do foro privilegiado para milhares de políticos — e agora se fala em estendê-lo a ex-presidentes.

O discurso para a aparente justificativa é sedutor: alardeia a garantia de direitos dos investigados e acusados (que têm mesmo de ser garantidos). Mas esquece a garantia do direito da sociedade, de não ver perpetuada a impunidade de criminosos por meio de manobras e chicanas.

Esses diversos fios se tecem em tramas e tramoias. Pelo menos, fiquemos atentos para perceber a complexidade do mecanismo. Há que abrir os olhos para votar melhor no futuro. Nada se resume a um “simples assim”.

O Globo, 09/12/2017


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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 2012 e 2013.

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