Uma parte do país respira com escassa quantidade de
oxigênio. Outra, só não foi desenganada pelas virtudes heroicas de nosso
povo, na obstinação dos democratas, os que defendem a Constituição. Ou talvez,
e mais simplesmente, porque os astros do zodíaco se apiedaram de tantas e
seguidas desventuras.
A sociedade civil, a despeito da crise, e por ela instigada,
amplia laços de cooperação no trabalho, nas escolas, na internet, como teoriza
Richard Sennett, para enfrentar o vazio de poder e a ausência do Estado. As
iniciativas contam com um largo espectro de ação e diversidade. Não aparecem na
mídia, mas nem por isso perdem brilho e rigor.
Imagine-se uma escola no meio do deserto, quase esquecida,
dotada de escassos recursos, a que se contrapõe um ousado corpo docente.
Passadas dezesseis portas de ferro, segue um caminho cercado de estreitos e
compridos pavilhões, onde ressoam “gritos, preces, maldições”.
Um verdadeiro oásis emerge das vísceras do presídio de Bangu
3, cujas penas ultrapassam duzentos anos.
Preservo o nome da escola e exalto o trabalho dos
professores, dentro e fora da sala, na biblioteca, o laboratório de
computadores off-line e o surpreendente ateliê. As pinturas são fortes, dotadas
de um acento expressionista, na paisagem da terra ancestral, na ambiência de um
mundo pobre e reinventado. Nas cores intensas como as de um velho calendário,
cujos dias passam entre morte e renascimento. Vi no ateliê um Manet selvagem,
um Degas rude e naïf, uma pequena história da “arte bruta” e seus derivados.
Não fui até lá para apreciar os quadros, mas para alcançar, através deles, uma
biografia, uma atmosfera de quando eram meninos sem casa, sem escola ou
quintal. Recuperar as biografias anônimas de nossos irmãos torna-se
urgente. Compreender o passado para fundar novos tempos verbais.
Dois jovens, voz e violão, cantam Toquinho. Os livros e um
conjunto de origamis. A leitura nas escolas carcerárias ultrapassa a média
nacional. Muitos vieram das ruas e só na prisão descobriram sabão, mesa e
talheres. “Quando sair daqui, vou ser jornalista” diz Jorge. “Prefiro
matemática”, confessa Antônio, “ajudo os colegas a calcularem o tempo que falta
para o fim da pena”.
Tantas gerações condenadas ao crime, dotadas de talento,
habilidade e inteligência. Quem pagará a conta de tal desperdício? Quando foi
que perdemos a potência criadora desses jovens, marcados pela fome e o
abandono, atraídos pela vida curta e rentável do tráfico de drogas, exilados,
quem sabe, do futuro?
A reposta é demasiado complexa e nela estamos implicados até
o coração. Admitida a hipótese, devemos ampliar a matrícula das escolas
prisionais, dobrar o número de professores, construir salas de aula. Não
podemos condenar duas vezes. O drama social não se resolve na masmorra.
Juntos, lado a lado, numa dinâmica de cooperação, com a
reconquista do território, boa parte do Brasil pode ensaiar novas bases
democráticas.
O Globo, 06/12/2017
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Marco Lucchesi
- Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na
sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi recebido em 20 de maio de 2011
pelo Acadêmico Tarcísio Padilha.
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