Meu Pai
Belo,
altivo e austero caráter. Honrado, probo, inteligente e trabalhador incansável.
Nascido
num meio pobre e rústico, distinguiu-se dos seus contemporâneos e dos seus parentes, sendo o primeiro da
família, o seu mentor, o seu orientador.
Lavrador
eficiente e exímio, dotado de uma clarividência que causava surpresa e inveja
aos seus similares de labor.
Competente
cultivador de canas, criador cuidadoso, habilíssimo cavaleiro, dono dos
melhores espécimes cavalares daquela
região.
O seu
cavalo de montaria “Quem te ama”, nobre e magnífico animal, era tratado com
esmero, e extremo cuidado. Não pastava solto, vivia na estrebaria, assoalhada
de toros de rija madeira roliça, para lhe enrijar a cascaria. Serviam-lhe terno capim d’angola,
previamente cortado, e manaiba com mel. Era banhado diariamente.
Para ser
levado ao banho eram necessário dois homens, para subjugá-lo.
Às
segundas-feiras, quando meu pai ia à Cristina, montado no “Quem te ama”,
despertavam atenção e louvores o garbo, a beleza e habilidade do animal. Era o
seu fraco montar cavalos finos. Este cavalo morreu em um acidente. Cabriolando
no pasto, um dia, caiu e quebrou o pescoço.
Era meu
pai lavrador de cana, do meu avô a princípio, e, depois, do coronel Argemiro, de quem era
grande amigo.
Mais
tarde, depois da morte do meu avô, de posse da herança que recebera e da compra
que fizera da terra vizinha, dos herdeiros do meu tio Lino (irmão do meu avô),
tornou-se proprietário do engenho, em cuja posse veio a falecer.
Antes,
porém, a sua vida dificultosa e tormentosa, muito lhe fez sofrer e, se não fosse a sua fibra e a sua envergadura de
lutador e o seu caráter firme, teria, certamente, sucumbido aos embates da
adversidade.
Possuía
meu avô umas terras magníficas no lugar “Cachimbo”, ubérrimas e próprias para a
cultura de cana, às margens do rio Real,
nos limites com a Bahia.
Obteve
permissão de meu avô e, naquelas terras,
fez grandes e vastas plantações de cana.
A esse
tempo éramos apenas quatro crianças, ainda.
Pio e Manoel em idade escolar, eu morando em Olímpia, Manoel com meu avô
e Pio com meus pais.
Morava meu
pai em boa casa, no “Criminoso”, onde nascemos.
Possuía
uma boa quantidade de gado, cavalos, ovelhas, porcos, etc., e reserva
monetária, que servia para ajudar no custeio da grande plantação que fizera.
Entretanto, o seu capital não era suficiente para o custeio do canavial.
Tomara dinheiro, a juros, a Horácio Nunes, em Cachoeira, para a continuação do
serviço, e com a promessa de lhe consignar toda a produção de açúcar, cuja
moagem seria feita no Engenho D’água, de propriedade de meu avô, e de meia,
isto é, cinquenta por cento para meu pai e cinquenta por cento para o meu avô.
As canas
cresciam e prosperavam assombrosamente, graças à exuberância dos terrenos, de
massapê ubérrimo. O verde claro de suas folhas finas e compridas, como espadas,
formava um oceano infinito e à passagem da brisa suave, elas inclinavam-se. Ao
mesmo tempo, a música das folhas impelidas pelos ventos, soava como melodias
sussurrantes e queixosas, tal quais minúsculas palmeiras a saudarem, com as
suas palmas, os raios solares.
No meio
desse éden de fartura e verdura construiu rústica choupana, a título precário,
e, ao redor, minúsculo pasto, onde pastava o seu cavalo de sela, que conduzia
de ida e volta, todos os dias, ao romper da aurora e às tardes, ao declinar o
dia.
Um dia... Sol
causticante e abrasador, calor de quarenta graus à sombra. Canícula infernal.
Tudo estalava sob a ação do sol de fogo. O mundo assemelhava-se a uma imensa
fogueira ou a um vulcão em atividade, a
vomitar lavas incandescentes.
Deixara,
na tarde do dia anterior, o cavalo no pasto do canavial, e tornara a pé, à
casa.
O canavial
estava na fase de maturação, as canas de quatro metros de comprimento
deitavam-se ao solo, maduras. Aprestava-se tudo para a moagem. E neste dia
fatídico, em pleno meio dia, sem saber-se a causa incendiou-se o canavial. A
notícia dolorosa corre célere. De toda parte chegam auxílios, que resultam
inúteis dadas a impetuosidade das labaredas e o calor ardentíssimo do sol.
Em poucas
horas tudo estava carbonizado, inclusive o cavalo e a cabana com os móveis
domésticos e ferramentas agrícolas. Aquele éden de verdura ficou reduzido a
cinzas e ao esqueleto tétrico e triste das canas calcinadas, cujas cinzas o
vento, ao passar, carregava.
De toda
parte lhe chegaram auxílios, de amigos e parentes condoídos da sua desdita.
Em face do
seu imenso prejuízo, resolveu aproveitar as canas calcinadas para o fabrico de
mel cabaú, que seria vendido aos alambiques para destilação.
Mobilizou
os carros de boi, próprios e dos amigos, , e os recursos de emergência, e nos
engenhos de meu avô e do coronel Argemiro, começou a moagem da cana queimada.
Porém não
ficou ali a desdita...
... Uma
cobra jaracuçu postada em um buraco junto à porteira do curral, passagem
obrigatória do gado, matou os bois de carro; uma peste dizimou todo o gado de
criar e de trabalho, deixando os pastos limpos. Para cúmulo do sofrimento,
surgiu forte desinteligência entre meu pai e meu avô, motivada por um carneiro
de meu pai, do qual o meu avô quebrou a cabeça. Resultou daí profunda
divergência entre os dois, total prejuízo para meu pai, que, desde então,
passou a ser lavrador do coronel Argemiro. Tudo se finalizou com o estado de
extrema pobreza, acrescida ainda da enorme dívida, de muitos contos, a pagar,
em juros.
Não lhe
arrefeceram o ânimo, porém, reveses surgidos. Enfrentou corajosamente a
situação, e novas roças fez, agora nos terrenos de Argemiro, de quem passou a
ser lavrador de cana, e anos após anos, numa labuta constante e sem trégua,
conseguiu a liquidação dos seus débitos, e refazer o seu patrimônio desfeito.
Lembro-me
que em nossa casa, nada se comprava no mercado, apenas fazenda, uma vez por
ano, e das indispensáveis e mais grosseiras. Tudo mais se produzia na fazenda.
Das roças tinham-se
os cereais e a mandioca; dos pastos, as aves, as ovelhas, os porcos. O sabão,
para lavagem, fazia-se de mamona e a soda indispensável para o fabrico do mesmo
era extraída de cinzas postas em um jequi com água, pendurado na trave da casa,
de que se ia filtrando um líquido corrosivo, que substituía a soda.
O sal
vinha de Abadia, presente de Higino, bem como cocos, peixes, etc.
Gás de
iluminação não se usava em casa. Era substituído o querosene por cordões
previamente embebidos em sebo de que se fazia lâmpada.
E, assim,
com essa economia inigualável, conseguiu retomar o fio da vida, tão brusca e
duramente interrompida pelo destino, e pagar as suas dívidas.
Foi um
homem.
(MEMÓRIAS DE CHICO BENÍCIO)
Francisco Benício dos Santos
* * *
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