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domingo, 13 de agosto de 2017

MEU PAI – Francisco Benício dos Santos

Meu Pai


            Belo, altivo e austero caráter. Honrado, probo, inteligente e trabalhador incansável.

            Nascido num meio pobre e rústico, distinguiu-se dos seus contemporâneos  e dos seus parentes, sendo o primeiro da família, o seu mentor, o seu orientador.

            Lavrador eficiente e exímio, dotado de uma clarividência que causava surpresa e inveja aos seus similares de labor.

            Competente cultivador de canas, criador cuidadoso, habilíssimo cavaleiro, dono dos melhores espécimes cavalares daquela  região.

            O seu cavalo de montaria “Quem te ama”, nobre e magnífico animal, era tratado com esmero, e extremo cuidado. Não pastava solto, vivia na estrebaria, assoalhada de toros de rija madeira roliça, para lhe enrijar a  cascaria. Serviam-lhe terno capim d’angola, previamente cortado, e manaiba com mel. Era banhado diariamente.

            Para ser levado ao banho eram necessário dois homens, para subjugá-lo.

            Às segundas-feiras, quando meu pai ia à Cristina, montado no “Quem te ama”, despertavam atenção e louvores o garbo, a beleza e habilidade do animal. Era o seu fraco montar cavalos finos. Este cavalo morreu em um acidente. Cabriolando no pasto, um dia, caiu e quebrou o pescoço.

            Era meu pai lavrador de cana, do meu avô a princípio, e,  depois, do coronel Argemiro, de quem era grande amigo.

            Mais tarde, depois da morte do meu avô, de posse da herança que recebera e da compra que fizera da terra vizinha, dos herdeiros do meu tio Lino (irmão do meu avô), tornou-se proprietário do engenho, em cuja posse veio a falecer.

            Antes, porém, a sua vida dificultosa e tormentosa, muito lhe fez sofrer e,  se não fosse a sua fibra e a sua envergadura de lutador e o seu caráter firme, teria, certamente, sucumbido aos embates da adversidade.

            Possuía meu avô umas terras magníficas no lugar “Cachimbo”, ubérrimas e próprias para a cultura de cana, às margens do  rio Real, nos limites com a Bahia.

            Obteve permissão de meu avô e, naquelas terras,  fez grandes e vastas plantações de cana.

            A esse tempo éramos apenas quatro crianças, ainda.  Pio e Manoel em idade escolar, eu morando em Olímpia, Manoel com meu avô e Pio com meus pais.

            Morava meu pai em boa casa, no “Criminoso”, onde nascemos.

            Possuía uma boa quantidade de gado, cavalos, ovelhas, porcos, etc., e reserva monetária, que servia para ajudar no custeio da grande plantação que fizera.

            Entretanto, o seu capital não era suficiente para o custeio do canavial. Tomara dinheiro, a juros, a Horácio Nunes, em Cachoeira, para a continuação do serviço, e com a promessa de lhe consignar toda a produção de açúcar, cuja moagem seria feita no Engenho D’água, de propriedade de meu avô, e de meia, isto é, cinquenta por cento para meu pai e cinquenta por cento para o meu avô.

            As canas cresciam e prosperavam assombrosamente, graças à exuberância dos terrenos, de massapê ubérrimo. O verde claro de suas folhas finas e compridas, como espadas, formava um oceano infinito e à passagem da brisa suave, elas inclinavam-se. Ao mesmo tempo, a música das folhas impelidas pelos ventos, soava como melodias sussurrantes e queixosas, tal quais minúsculas palmeiras a saudarem, com as suas palmas, os raios solares.

            No meio desse éden de fartura e verdura construiu rústica choupana, a título precário, e, ao redor, minúsculo pasto, onde pastava o seu cavalo de sela, que conduzia de ida e volta, todos os dias, ao romper da aurora e às tardes, ao declinar o dia.

            Um dia... Sol causticante e abrasador, calor de quarenta graus à sombra. Canícula infernal. Tudo estalava sob a ação do sol de fogo. O mundo assemelhava-se a uma imensa fogueira  ou a um vulcão em atividade, a vomitar lavas incandescentes.

            Deixara, na tarde do dia anterior, o cavalo no pasto do canavial, e tornara a pé, à casa.

            O canavial estava na fase de maturação, as canas de quatro metros de comprimento deitavam-se ao solo, maduras. Aprestava-se tudo para a moagem. E neste dia fatídico, em pleno meio dia, sem saber-se a causa incendiou-se o canavial. A notícia dolorosa corre célere. De toda parte chegam auxílios, que resultam inúteis dadas a impetuosidade das labaredas e o calor ardentíssimo do sol.

            Em poucas horas tudo estava carbonizado, inclusive o cavalo e a cabana com os móveis domésticos e ferramentas agrícolas. Aquele éden de verdura ficou reduzido a cinzas e ao esqueleto tétrico e triste das canas calcinadas, cujas cinzas o vento, ao passar, carregava.

            De toda parte lhe chegaram auxílios, de amigos e parentes condoídos da sua desdita.

            Em face do seu imenso prejuízo, resolveu aproveitar as canas calcinadas para o fabrico de mel cabaú, que seria vendido aos alambiques para destilação.

            Mobilizou os carros de boi, próprios e dos amigos, , e os recursos de emergência, e nos engenhos de meu avô e do coronel Argemiro, começou a moagem da cana queimada.

            Porém não ficou ali a desdita...

            ... Uma cobra jaracuçu postada em um buraco junto à porteira do curral, passagem obrigatória do gado, matou os bois de carro; uma peste dizimou todo o gado de criar e de trabalho, deixando os pastos limpos. Para cúmulo do sofrimento, surgiu forte desinteligência entre meu pai e meu avô, motivada por um carneiro de meu pai, do qual o meu avô quebrou a cabeça. Resultou daí profunda divergência entre os dois, total prejuízo para meu pai, que, desde então, passou a ser lavrador do coronel Argemiro. Tudo se finalizou com o estado de extrema pobreza, acrescida ainda da enorme dívida, de muitos contos, a pagar, em juros.

            Não lhe arrefeceram o ânimo, porém, reveses surgidos. Enfrentou corajosamente a situação, e novas roças fez, agora nos terrenos de Argemiro, de quem passou a ser lavrador de cana, e anos após anos, numa labuta constante e sem trégua, conseguiu a liquidação dos seus débitos, e refazer o seu patrimônio desfeito.

            Lembro-me que em nossa casa, nada se comprava no mercado, apenas fazenda, uma vez por ano, e das indispensáveis e mais grosseiras. Tudo mais se produzia na fazenda.

            Das roças tinham-se os cereais e a mandioca; dos pastos, as aves, as ovelhas, os porcos. O sabão, para lavagem, fazia-se de mamona e a soda indispensável para o fabrico do mesmo era extraída de cinzas postas em um jequi com água, pendurado na trave da casa, de que se ia filtrando um líquido corrosivo, que substituía a soda.

            O sal vinha de Abadia, presente de Higino, bem como cocos, peixes, etc.

            Gás de iluminação não se usava em casa. Era substituído o querosene por cordões previamente embebidos em sebo de que se fazia lâmpada.

            E, assim, com essa economia inigualável, conseguiu retomar o fio da vida, tão brusca e duramente interrompida pelo destino, e pagar as suas dívidas.

            Foi um homem.


(MEMÓRIAS DE CHICO BENÍCIO)
Francisco Benício dos Santos

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