O Amigo Jorge Amado
Cyro de Mattos
Conheci
Jorge Amado nos idos de l959, em tarde de
autógrafos, na antiga Livraria
Civilização Brasileira, da rua Chile, Salvador. Na fila enorme dos que
aguardavam a sua vez para receberem o autógrafo, eu lá estava, moço do
interior, estudante da Faculdade de Direito
da UFBA. Estava nervoso. Vivia a expectativa de ver de perto o
consagrado romancista baiano pela primeira vez. Quando chegou o momento de
receber o autógrafo de Jorge,
aproximei-me com o exemplar de Gabriela, cravo e canela. E, timidamente,
disse-lhe que era
grapiúna, como ele vinha das
terras ricas do cacau no Sul da Bahia. No mesmo instante da revelação do lugar
de nascimento, fez-se num rosto largo e manso o sorriso alegre de quem
acabava de ouvir algo que lhe tocava o coração. Com que prazer o autor de Gabriela, cravo e canela assinalou no livro ser também grapiúna, das terras de Itabuna, das
ricas plantações de cacau, do território onde uma saga havia sido forjada por
homens rústicos com suor, cobiça e
morte. Fazia assim com que eu sorrisse
um belo sorriso e amasse ainda mais as minhas raízes grapiúnas.
Seguia no
rio da vida e, em 1966, já no Rio de
Janeiro, publicava meu primeiro
livro, pequeno volume de contos, hoje
riscado de minha produção por ter
envelhecido o texto rapidamente. Enviei o pequeno volume a Jorge Amado,
seguindo conselho de um companheiro de geração, mas não esperando que viesse
alguma opinião do autor de Terras do sem fim sobre o meu livro de estreia. Qual
não foi a minha grata surpresa depois, por ver em curto espaço de tempo um
livro de autor desconhecido ser
apresentado à Academia Brasileira de
Letras com palavras favoráveis do admirável romancista Jorge Amado.
Outros
livros meus vieram e foram merecedores de artigos com elogio por parte de Jorge Amado. Não deixavam de ser opiniões
sob a ótica impressionista, mas espontâneas,
o que interessava. Verdadeiras, simples e profundas, abonadas com a sensibilidade de quem mais conhece os caminhos do fazer literário na
recriação da vida. E mais: ele publicava
os artigos que escrevia sobre aqueles livros em jornais importantes como A Tarde,
Jornal de Letras (Rio), do saudoso Elysio Condé, Jornal do Comércio (Rio) e
Suplemento Literário de Minas Gerais.
Tais gestos do criador de Quincas
Berro d’Água aconteceram também com outros escritores, alguns emergentes, outros com obra em andamento ou
consagrados, baianos ou não. O romancista João Ubaldo Ribeiro sabe do que
falo agora. E Guido Guerra, Sonia
Coutinho, Florisvaldo Mattos, Ildásio Tavares, Hélio Pólvora, Jorge Medauar e
Vasconcelos Maia. Ele nunca atropelava,
sempre enriquecia o companheiro de letras com suas opiniões, sem esperar nada
em troca. Nada tomava na guerra neurótica, muitas vezes diabólica, que é a da
literatura, infelizmente. Prefácios, orelhas, artigos, depoimentos,
apresentações à Academia Brasileira de Letras, um legado literário da melhor
qualidade em língua portuguesa sobre livros de nossos autores. Textos que, se forem coligidos, dariam
valiosos livros como uma importante contribuição à cultura brasileira e ao corpo de nossas letras.
Ao
escrever sobre um dos meus livros destinados às crianças, artigo que foi
publicado no jornal A Tarde, em forma de missiva dirigida ao romancista Josué
Montelo, então presidente da Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado chegou
ao ponto de lembrar meu nome para fazer
parte daquela tão importante instituição cultural. Houve exagero. Só mesmo
Jorge, com o seu coração de mel de cacau,
alma com ardor e verdor de marinheiro baiano, onde habitava um sol
com sua flor gigantesca, podia
distinguir meu nome de maneira tão
generosa, que comovia e servia como incentivo para que eu continuasse em minha jornada de
ser escritor.
Exercia a amizade como uma coisa nata, tão
dele. E nos mostrava sempre com os
gestos fraternos para o deleite doce e meigo dos dias que com mãos nas mãos tudo fica mais claro.
Com ele não entravam no exercício da
vida a intriga, a inveja e o despeito.
Dava-me
conta por isso que existia ainda o homem simples como o artista, embora fosse
comum encontrar na vida o artista
vaidoso como o homem.
Dizia-se
ateu, ele que era tão cristão porque terno, solidário, sincero: humaníssimo. E
o contador de histórias? Você não escreveu nada sobre isso? Perguntou-me
Mariza, minha esposa, para quem eu li trechos dessa crônica, cada vez que
parava e buscava força para prosseguir, de tão estranho que achava a vida ter
perdido esse raro amigo. Disse-lhe: você sabe mais do que eu. Fascinante,
mágico, dramático, lírico. Ele dava dignidade aos excluídos. . Encantava da primeira à última página através da escrita sensual. Recriava a vida como poucos
quando emprestava a palavra ao real e o ao sonho.
Que coisa
muito triste, a vida física de Jorge ter acabado. Tanta coisa, tanto caso,
tanta verdade deixou para o leitor
espantar para longe o tempo ruim. Esse que nasceu numa pequena fazenda em
Ferradas, que foi distrito e hoje é
bairro do município de Itabuna, passou a infância e juventude em Ilhéus
para ser um bem-amado cidadão do mundo, em inacreditável peripécia porque assim
devia ser.
(Do livro Um grapiúna em Frankfurt, crônicas, Dobra
Editorial, SP, 2013)
Cyro de Mattos - Ficcionista e poeta. Publicado em
inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, dinamarquês, russo. Premiado no
Brasil, Portugal, Itália e México. É membro titular da Academia de Letras da
Bahia,da Academia de Letras de Ilhéus e membro fundador da Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário