Carlos
Sousa teimava com Tourinho que dizia: “Você acha que se pode governar um
município com o espírito intransigente de Henrique Alves, a pose do mulato Liguori,
a imposição de Godofredo Almeida, a teimosia de Zezinho Kruschewsky, a
esperteza de Adolfo Leite e a peraltice do rábula Laudelino Lorens?
A
discussão tomava vulto. Carlos Sousa não era político, mas tinha as suas
simpatias por Henrique Alves. Felizmente, quando a coisa marchava para
azedar-se entre os dois velhos amigos, passou Filadelfo Almeida e convidou
Carlos Sousa para ouvir no grêmio uma conferência sobre cacau, que ele ia
pronunciar com citações do livro do Coronel F. R. Hul, gerente da estrada de
ferro. E leu o histórico do cacaueiro, “originário das regiões tropicais da
América Central e do Sul”. O cacau selvagem é comum nas bacias do Orinoco e
Amazonas. Segundo De Condol a árvore se acha em cultura desde três a quatro
milhares de anos. Os Astecas, do México e os Incas, do Peru, apreciavam a
bebida do chocolate muito antes de Colombo descobrir o Novo Mundo. Conta Bernal
Diaz Del Castillo que, em 1519, acompanhou Cortez na Conquista do México, que
numa festa “de vez em quando traziam-lhe, numa xícara de forma de copo, de ouro
puro, uma bebida feita de cacau e as mulheres serviam esta bebida com grande
cerimônia”. “Caixas de chocolate e fardos de chocolate vermelho, formavam uma
parte das receitas reais do México, e Montezuma tinha em depósitos acumulados
mais de 40 mil fardos de cacau, que era recebido como tributo. E o conselheiro
de Carlos V, ao voltar da América, escreveu que a moeda corrente entre esses
povos era a fruta do cacau. Do dinheiro podia fazer-se bebida para o rei e
preferiam essa moeda, à de ouro ou à de prata, como menos prejudicial ao espírito e mais proveitosa ao
corpo.”
E daí por
diante, o conferencista continuou a falar sobre o cacau, as suas virtudes, a
necessidade das classes se juntarem em associações, para melhor defenderem os
seus interesses amesquinhados pelos especuladores. E citou as palavras do
Engenheiro Joaquim Baiana que, em 1904, já explicava que a lavoura só
encontraria salvação através do cooperativismo. De outra forma, caminharia para
insucessos financeiros e mesmo para a escravidão. O exemplo estava na cara.
Eles, os lavradores, produziam, eram donos das riquezas, mas estas eram
controladas, absorvidas pelos intermediários. Infelizmente a classe vivia
dormindo, absorvida numa espécie de catalepsia, mesmo insensível ao sofrimento.
E continuou: “A seiva da especulação tem mais vitalidade, nesta terra, que a
seiva do cacaueiro que sustenta tudo isso. A Rua da Jaqueira, ninho e coito dos
‘partidistas’ tem mais expressão no domínio econômico, que a coletividade
agrícola. No passado, os cultivadores do cacau bebiam o chocolate em taças de
ouro, no presente, os lavradores bebem água, que apanham nos ribeirões, nas
folhas do próprio cacaueiro, por não possuírem um copo de vidro”.
Netuno, o
“deus”, saiu pelo mundo, dando aos outros deuses sementes do cacau. Naquele
tempo, os deuses cultivavam o cacau, hoje os seus cultivadores são os
sofredores das matas desta terra. Mas, os deuses da exploração ainda não
desapareceram, eles vivem entre nós, são os do “caxixe”, da roubalheira,
arranchados na Rua da Jaqueira, comprando cacau a baixo preço e vendendo com
lucros fabulosos. Precisamos reagir contra semelhante estado de coisas,
verdadeiramente injusto e monstruoso. Necessitamos de criar cooperativas, um
instituto, um órgão de defesa da grande classe.
Ao
terminar a sua conferência foi muito aplaudido. Aquele Filadelfo tinha tintas
de orador e de socialista, disse um dos presentes.
Francisco
Benício dos Santos gostou bastante da conferência. Era um homem trabalhador,
honrado, cumpridor dos seus deveres e estava sempre ao lado das boas causas.
Apoiava os movimentos de sentido coletivo, que tratassem do bem geral, e sentia
pelo próximo uma afeição espiritual, como se cada cidadão fosse um seu irmão,
nesta passagem provisória da terra, como bem dizia o Moura Teixeira...
Depois da
conferência, que teve sucesso, os assistentes cumprimentaram o orador e se
dirigiram para um bar, na antiga Rua da Lama.
No bar,
pediram cerveja. Ainda a conversa se demorou um pouco sobre a conferência,
depois descambou para a política. E citaram o Zezinho Kruchewsky, novamente
candidato a intendente e, agora, por impossível que parecesse, apoiado pelo
grupo que o traiu, em 1915.
O mundo dá
muitas voltas e em cada encruzilhada existe uma surpresa.
Carlos
Sousa, que ouvia a conversa, deu seu palpite:
- O mundo
dá voltas, mas Gileno Amado só não roda sozinho o mundo Itabunense, porque
existe Henrique Alves. Com este ele não pode, é no duro. Chefe contra chefe,
homem contra homem.
E a
discussão prolongou-se, e as garrafas de cerveja foram-se amontoando e as
mulheres chegando.
Passava de
meia-noite, quando o grupo se dispersou, uns convencidos de que o chefe era
mesmo Gileno Amado, outros que era Henrique Alves.
Entre
esses dois homens a opinião pública Itabunense se dividia, forte e muitas vezes
exaltada.
(TERRAS DE ITABUNA – Capítulo XX)
Carlos Pereira Filho
* * *
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