O reino animal
Nunca tive um animal de estimação. A não ser meus amigos —
que são animais relativamente racionais.
Quando eu era criança, durante o breve período em que
moramos em Brasília, ganhei um casal de coelhos, Lico e Lica. A Lica teve um
destino trágico: foi devorada pelo cachorro do vizinho. Já o Lico, quando nos
mudamos de volta para o Rio, ficou em Brasília, foi adotado por um jornalista
amigo da família e virou comentarista político de TV.
Você não acredita? Pois o Lico trabalhava num programa
chamado “O coelho e eu”, no qual o jornalista Aluísio Chaves lhe fazia
perguntas sobre a atualidade política. Por exemplo: “O que você acha do governo
Temer?” A câmera cortava para o focinho do Lico, sempre em movimento, parecia
que estava falando. E o Aluísio fingia reproduzir sua fala: “Segundo o Lico, o
governo Temer é digno de uma República de Bananas.”
Anos depois, um veterinário descobriu que o Lico era Lica.
Parece que o sexo dos coelhos, tal como o dos anjos, é matéria complicada. E
creio que Lico/Lica se tonou o primeiro transgênero celebrizado pela TV dos
anos 60.
No capítulo dos felinos, tive duas gatas. A primeira se
chamava Teresa. Levei-a para morar lá em casa contra a vontade de meu pai, que
tinha trauma de infância provocado pela morte involuntária de uma gatinha. Como
era um coração democrático, porém, papai aceitou provisoriamente a coabitação
com Teresa. Até a noite em que chegou em casa meio embriagado e, quando foi
respirar fundo, na penumbra da sala, sentou-se no sofá em cima dela. Saíram os
dois miando e gritando, cada qual para o seu lado. Acabei forçado a levar
Teresa para o apartamento do historiador Hélio Silva, que não só a adotou como
chegou a exibi-la no colo, na capa da “Veja”.
A segunda se chamava Eleanor Rigby, mais conhecida por Lelê.
Lelê e eu vivíamos em completa felicidade conjugal. Só que um dia meu filho
mais velho, Joaquim Pedro, partiu para Tiradentes, para gravar uma minissérie.
Lelê apaixonou-se pela ausência dele.
Desolada, ela se deitava todas as noites
sobre os tênis de Joaquim.
Me lembrei de Drummond: a falta que ama. Logo
percebi que Lelê me abandonaria, em companhia de meu filho. Tiro e queda. Aconteceu.
Nos últimos anos tivemos aqui em casa a Dáwa — que significa
Lua em tibetano — , uma cachorrinha que nos abandonou há cerca de dois anos. A
arte de perder é difícil de dominar, ao contrário do que diz a poeta americana
Elizabeth Bishop, com dolorosa ironia.
Há duas décadas, meu amigo Millôr Fernandes perdeu seu Igor,
um poodle simpático. Nunca o vi tão triste, ficou jururu durante um ano. E
agora minha amiga Nélida Piñon perdeu o seu amado Gravetinho. Aqui vai o meu
carinho para acalentá-la.
Na próxima encadernação espero merecer o amor dos animais.
O Globo, 23/07/2017
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Geraldo Carneiro
- Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL, eleito em 27 de outubro de 2016, na
sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31 de março de 2017 pelo Acadêmico
Antonio Carlos Secchin.
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