O busto de Susana
Ia
desenhar o busto de Susana com todo esmero artístico, dando-lhe linhas mais
suaves, transformando o achatamento dos seios numa forma pontiaguda, sensual;
no rosto daria pequenos retoques, ruborizando os lábios, acentuando a
luminosidade dos olhos, diminuindo a infinidade de cachos, tornando o cabelo
levemente ondulado.
Como
desenhista, já havia conquistado quatro prêmios em exposições importantes, uma
internacional. Além dessas honrarias, conquistara outros títulos e a crítica especializada
o consagrava.
“Por que
Susana não liga para meus quadros”? Ela se prendia mesmo era a passeios pelos
locais alegres da cidade, olhando as vitrines, chupando sorvete pelas
lanchonetes chiques; enfiava-se em roupas apertadas salientando as formas e se
mandava para a rua, em companhia de amigas dessas andanças.
Pensava em
coisas assim enquanto ajeitava um cavalete a um canto da sala; tinha na memória
o esboço do busto de Susana – as sutilezas que iam transformar os seios, os
olhos, o cabelo, a boca; capricharia no espalhamento das sombras, na tonalidade
das cores; seria seu melhor trabalho de arte. No quarto ao lado da sala onde
ele se encontrava traçando as primeiras linhas, Susana aparecia de camisola
rosa-transparente, na cama, corpo moreno, folheando uma revista de modas,
encostada a um travesseiro de fronha azul entre a luz intensa de uma lâmpada
forte.
Em cinco
anos de convívio entre os dois, ele nunca teve o prazer de vê-la interessar-se
por um trabalho seu; às vezes, por insinuações dele, Susana passava olhares
rápidos por um ou outro quadro, fazia um risinho discreto e afastava-se dando
de ombros. Isso o decepcionava, premiado tantas vezes, elogiado por críticos e
artistas de renome, por jornalistas e outras pessoas esclarecidas. Só isso não
o entusiasmava, faltava o interesse de Susana; daí a ideia de copiá-la com uma
obra de arte que sacudisse a indiferença dela.
Seria uma
tela de alto nível artístico acrescentando traços sutis, dando-lhe nuanças
novas, mais brilho nos olhos, colorido nos lábios, mais austeridade no cabelo.
Pensava em coisa parecida com obra-prima.
Num gesto
de quem está com sono, Susana fechou a revista e espreguiçou-se, sentando-se no
meio da cama; encolheu as pernas e começou a rezar, benzeu-se depois e
deitou-se de bruço virando o rosto para um lado.
Pelos
cálculos dele o quadro ficaria concluído num prazo curto, aí entre dois a três
dias. “Esse, sim, vai ser o melhor prêmio em minha vida”, pensou, riscando
traços, espalhando sombras sobre a fisionomia emergindo na tela exposta; vez em
quando ele passava um rabo-de-olho para Susana deitada entre a turvação que
agora envolvia o quarto, para a revista de modas sobre a penteadeira ao lado,
fechada, parecendo uma mancha; a transparência da camisola perdera-se na
penumbra e o corpo de Susana era um vulto sobre o lençol branco bordado de
vermelho.
Caprichava
nas linhas, tornando os seios pontudos, acentuando a luminosidade dos olhos,
ruborizando a boca, delineando o cabelo. “Terei que aplicar todo o meu
talento”. Os olhos brilhavam mais, a saliência dos seios ganhava mais realce,
os lábios pareciam mais doces; uma técnica sutil não denunciava a diferença
entre a tela e o modelo.
Às duas da madrugada ele sentiu sono e
bocejou; muita fumaça de cigarro embaciava o ambiente quase asfixiante. O
esboço estava concluído. Antes de apagar a luz dirigiu-se para o lavatório no
pátio onde escovou os dentes e banhou o rosto; voltando, parou por um instante
frente à tela, obstinado. Apagou a lâmpada e entrou para o quarto onde Susana
dormia de bruço na cama com lençol bordado de vermelho; deitou-se sutil entre
duas Susanas, todo envolvido, porém, com a que ficara como esboço na sala de
trabalho.
(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas
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