O Empregado público aposentado
Os Egípcios inventaram a múmia para conservarem o cadáver
através dos séculos. Assim a matéria não desapareceria na morte; triunfava
dela, do que temos alguns exemplos ainda.
Mas não existiu só lá esse fato. O empregado público não se
aniquila de todo na aposentadoria; vai além, sob uma forma curiosa,
antediluviana, indefinível; o que chamamos empregado público aposentado.
Espelho à rebours, só reflete o passado, e por ele chora
como uma criança. É a elegia viva do que foi, salgueiro do carrancismo,
carpideira dos velhos sistemas.
Reforma, é uma palavra que não se diz diante do empregado
público aposentado. Há lá nada mais revoltante do que reformar o que está
feito? Abolir o método! Desmoronar a ordem!
Atado assim ao poste do carreirismo, eterno lábaro do que é
moderno, o empregado público aposentado é um dos mais curiosos tipos da
sociedade. Representa o lado cômico das forças retroativas que equilibram os
avanços da civilização nos povos.
É o tipo que hoje trago à minha tela. São variáveis o
caráter e a feição desta individualidade, mas eu procurarei dar-lhe os traços
mais finos, os mais vivos.
Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol
sem luz, o oceano sem água. Uma pertence ao outro, como a alma pertence ao
corpo; são inseparáveis. E têm razão! O que vale uma caixa de rapé, não o compreende
qualquer profano. É o adubo oportuno de uma conversa árida e suada sobre qualquer
reforma de governo. É o meio de conhecimento com um potentado de quem se espera
alguma coisa. É a caixa de Pandora. É tudo, quase tudo.
E não parece. Aquele utensílio tão mesquinho, em outro
qualquer, está circunscrito na estreita esfera do nariz; nas mãos do
aposentado, transforma-se; em vez de se transformar o depósito de um vício,
torna-se o instrumento de certos fatos políticos que muitas vezes parecem
nascer de causas mais altas.
Este prestígio do empregado público aposentado não para só
na caixa, estende-se por todos os acessórios daquele curioso indivíduo. Na gravata,
na presilha, na bengala, há certo ar, uma nuança especial, que não está ao
alcance de qualquer.
Ou natureza, ou estudo, a aposentadoria traz ao empregado
público esses dotes, como um presente de núpcias.
Ora, apesar deste metódico das formas, não estão limitadas
aí as vistas do aposentado. Há naquele cérebro alguma finura para se não
entregar exclusivamente a essas ninharias. E a política? A política lá o
espera; lá o espera o governo; lá o espera o teatro, as modas, os jornais, tudo
o espera.
Não é maledicente, mas gosta de cortar o seu pouco sobre as
coisas do país. Não é um vício, é uma virtude cívica: o patriotismo.
O governo, não importa a sua cor política, é sempre o bode
expiatório das doutrinas retrógradas do empregado público aposentado. Tudo
quanto tende ao desequilíbrio das velhas usanças é um crime para esse viúvo da
secretária, arqueólogo dos costumes, antiga vítima do ponto, que não compreende
que haja nada além das raias de uma existência oficial.
Todos os progressos do país estão ainda debaixo da língua
fulminante deste cometa social. Estradas de ferro! É uma loucura do modernismo!
Pois não bastavam os meios clássicos de transporte que até aqui punham em
comunicação localidades afastadas? Estradas de ferro?
Desta sorte todas as instituições que respiram revolução na
ordem estabelecida das coisas — podem contar com um contra do empregado público
aposentado. Este meio mesmo de retratar a pena, como faço atualmente,
revoltaria o espírito tradicional da grande múmia do passado. Uma inovação de mau
gosto, dirá ele. É verdade; não representa apenas a superfície da epiderme, vai
às camadas mais íntimas da matéria organizada.
O empregado público aposentado poderá deixar de comer, mas
lá perder um jornal, lá perder um jubileu político ou sessão do parlamento, é
tarefa que não lhe está nas forças.
O jornal é lido, analisado com toda a finura de espírito de
que ele é capaz. Devora-o todo, anúncios e leilões; e se não vai ao folhetim, é
porque o folhetim é frutinha do nosso tempo.
No parlamento, é um espectador sério e atencioso. Com a
cabeça enterrada nas paredes mestras de uma gravata colossal ouve com toda a
atenção, até os menores apartes, vê os
pequenos movimentos, como profundo investigador das coisas políticas.
Ao sair dali, o primeiro amigo que encontra tem de levar um
aguaceiro de palavras e invectivas contra a marcha dos negócios mais
interessantes do país.
De ordinário o aposentado é compadre ou amigo dos ministros,
apesar das invectivas, e então ninguém recheia as pastas de mais memoriais e
pedidos. Emprega os parentes e os camaradas, quando os emprega, depois de uma
longa enfiada de rogativas importunas.
É sempre assim!
No sarau o empregado público aposentado é pouco cortês com
as damas; vai procurar emoções nas alternativas de um lindo baralho de cartas.
Mas para não faltar ao programa, lá vi tachando de imoral aquele divertimento
que tanto dinheiro absorve; fica-lhe a consciência.
Onde poderemos encontrar ainda o aposentado? Ele vai por
toda a parte onde é lícito rir e discutir sem ofensa pública.
O leitor conhece decerto a individualidade de que lhe falo,
é muito vulgar entre nós, e de qualidades tão especiais que a denunciam entre
mil cabeças. Que lhe acha? Quanto a mim é inofensiva como um cordeiro.
Deixem-no mirar-se no espelho dos velhos usos, falar em política, discutir os
governos; não faz mal.
Em uma comédia do nosso teatro, há uma reprodução deste
tipo, o Sr. Custódio do Verso e Reverso. Mirem-se ali, e verão que, apesar do
estreito círculo em que se move, faz pálidos e mirrados estes ligeiros e mal
distintos lineamentos.
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Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro, 11 e
18/09 e 9, 16 e 30/10/1859.
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