Não direi de minha amizade por Eduardo Portella. Não
encontro forças, abalado pela sua partida. Direi apenas do crítico, do
pensador, que vivo permanece, como um dos maiores poetas do ensaio em língua
portuguesa.
Eduardo Portella poderia figurar nas páginas de Walter
Benjamin como um anjo em meio às ruínas, levado pelos ventos da História,
quando começa a reunir as partes de um todo disperso. Poderia flanar igualmente
nos versos de Baudelaire no limes de uma cidade infinita, um Wanderer na
espessura da superfície. Portella fez de sua condição peregrina uma autêntica forma
mentis, congenial ao tempo que nos desafia, para lidar com a astúcia da
incerteza, na genealogia do fragmento. Sua leitura passa de um regime vertical
para um trâmite radial, como um saber que se move a contrapelo das formas
transitivas. Não aceita horizonte prévio, como a euclidiana geometria de Kant,
mas segue uma perene reinvenção dos sistemas, como queria Sloterdijk, cuja
trilogia mais de uma vez discutimos, à sombra das estantes da Biblioteca
Nacional, levando à cena o jogo da Parte e do Todo, dramatis personae do
repertório ocidental.
Portella desistiu de escrever uma história de para
exorcizar uma rima conceitual que considerou perigosa, de um todo totalitário,
mais inclinado, muito embora, a um todo totalizável, no corte do fragmento,
como Wittgenstein, para atingir uma história em. Portella optou por um
percurso intensivo mais que extensivo, denso, rarefeito. A qualidade do
pensamento não se mede por léguas de sesmaria ou latifúndio, sua métrica não se
quantifica por testadas, mas de acordo com a potência qualitativa de expansão
conceitual, no conteúdo crescente de Popper, ou na leitura de
Heidegger sobre Hölderlin.
Eduardo Portella sente a demanda do sistema que elabora em
horizonte fértil. Como quem parte de uma norma fractal. Como quem reclama a
vastidão da parte sobre o todo, assim como da síntese sob suspeita, como desejo
de futuro, sem veleidades sintáticas, alquimista que não se limita à busca da
pedra, uma enciclopédia que indaga as malhas de um verbete inacabado, onde
lateja uma sinergia multidirecional.
Nesse drama da parte com o todo, movem-se as máquinas do
ensaio de Portella, que coincide com o círculo hermenêutico, sem um deus
ex machina. Sob a estética do risco, o ensaio patrocina uma fratura, um
elemento descontínuo. Portella não admite as tautologias, os determinismos
sublimados e escondidos. Imerso nos desafios da “baixa modernidade”, Portella
optou nos últimos anos pela dissonância, distanciando-se da síntese hegeliana,
acolhendo a paralaxe de Žižek. Falamos do céu astronômico, de quanto meu
corajoso telescópio captura nas noites de Itacoatiara.
A partir daí o sentido e a regra, a demanda e o percurso, o
fluxo e a permanência operam, cada qual a seu modo, como instrumentos de
abordagem do real. Portella segue um processo livre e vigoroso, ao mesmo tempo
ficcionista e poeta, elemento-chave de sua obra esse hibridismo, como quem
flutua, com Claudio Magris, sobre um Danúbio de conceitos convergentes da
política e da poética, que se nutre de uma terceira margem. Portella é um
nômade do pensamento sem endereço fixo para não se aprisionar dentro de uma
província. É inquilino da complexidade de Morin e do pensamento fractal de
Mandelbrot, contradança da parte com o todo.
Nos últimos anos, o baricentro de Eduardo Portella migrou da
crítica para a metacrítica e a novos pontos de fuga. Suas páginas se tornaram
espantosamente híbridas e abertas, como um hermeneuta da suspeita, de quem
realiza uma biografia indireta, a partir de sua intensa noosfera. Uma memória
futura, bem entendido, atravessada por um tempo que não fecha.
Jornal de Letras (Lisboa), 26/05/2017
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha.
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