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quinta-feira, 1 de junho de 2017

NA ESCOLA - Francisco Benício dos Santos


Na escola


            Ao completar o meu quarto aniversário, morando com minha madrinha Olímpia, fui mandado à escola do professor João da Matta, em Cristina, onde nada aprendi, nem as letras do alfabeto.

            Passava o tempo todo na aula de boca aberta chupando o dedo, despreocupado e indiferente ao ABC, cuja carta, um suplício para mim, vivia amarrotada entre as minhas mãos sujas e suadas.

            Deixavam-me crescer os cabelos e sobre eles, davam um laço de fita adornando-os. Isto me valeu a alcunha de “Chico Muié”, com a qual eu ficava furioso.

            Um dia, estava na escola sentado no banco de lado da parede, de costas para a rua, com a boca aberta, como de costume, e com a terrível carta de ABC machucada entre os dedos das mãos suadas, quando uma mosca vadia e malandra, sem mais cerimônia, encontrando-a escancarada, embarafustou por ela adentro, e lá se foi ao estômago. Vomitei a valer.

            O professor mandou-me, por um dos colegas, à casa, onde recebi tremenda vaia, e me crismaram com um novo apelido: “boca aberta”.

            Prometi a mim mesmo corrigir-me. Nessa escola nada aprendi, e dela guardo breves recordações, apenas traços da minha passagem.

            Com a minha saída da escola do professor Matta, mandaram-me para o professor Juvenal José de Souza, onde já estavam os irmãos Pio e Manoel, como alunos internos.

            Nessa fase da minha vida, minha avó Justina tinha se mudado de Chapada e morava no caminho, no Engenho D’água, em casa feita para ela especialmente, por meu pai. Olímpia, porém, residia com minha família.

            Na escola do professor Juvenal  também fiz muito pouco progresso. Era péssimo estudante, e, quando recriminavam a minha moleza e falta de inteligência, Olímpia tomava a minha defesa dizendo:

            - Os sentenciados são os que Deus favorece.

            O futuro ia confirmar a profecia do refrão.

            Nessa escola, deu-se um fato que provocou reprovações: num dia de aulas, o professor exasperou-se com Pio, e batendo-lhe com a palmatória nas mãos, também o fez nas nádegas, dando lugar ao protesto imediato de Manoel, que se achava presente, e já era rapaz.

            Meu pai soube do ocorrido, ficou furioso e se não fosse a intervenção de pessoas amigas e prestigiosas, o casa teria degenerado em sério conflito.

            Saímos os três da escola e fomos para a de dona Amância Francisca da Paixão, Manoel, Pio e eu, porque era muito pequeno, fui para a escola de dona Adelina Freire de Melo.

            Ali passei dois anos sem fazer nenhum progresso, a professora, muito carola, passava a maioria do tempo em rezas e na igreja. Todos os dias,  ia com os alunos internos à missa da manhã.

            Frequentando missa, cheguei a aprender trechos inteiros do latim.

            Era vigário o meu padrinho, Antonio Marcelino de Souza Leal, velhinho muito simpático e limpo, acumulava funções de pároco e de delegado escolar, instrutor  das crianças da escola, que lhe tinham um respeito real.

            Era aluno interno desse colégio, quando se deu a revolução do coronel Valadão, que assumindo o governo de Sergipe, derrubou a facção política do padre  Olímpio de Campos, chefe supremo da política sergipana, que gozava, em Vila Cristina, de real e indiscutível prestígio.

            Meu pai era seu correligionário e, com ele, a maioria dos senhores de engenho, inclusive, o célebre caudilho “Guinô da Furada”, em cujos limites soldados não penetravam sem a sua prévia licença.

            O major Ernesto, pai do meu amigo Zacarias, era o chefe político de Itabaianinha, cabeça da comarca, da qual dependia Cristina.

            O Valadão, coronel do Exército, para lá mandou cem praças, a fim de, pelo terror, manter a sua própria política, e liquidar a do Padre Olímpio.

            O principal visado era o major Ernesto, chefe político e irmão do padre, que se viu na contingência de fugir à perseguição da tropa, exilando-se em Vila Cristina, sob a proteção de Guinô, seu amigo político e com real influência na política da Bahia.

            Data dessa época o meu conhecimento com o amigo Zacarias Freire, por se haver hospedado na casa do professor Adelino Freire, de quem a mãe de Zacarias era parente, o major Ernesto com toda a família.

            Serenados os ânimos, volta para Itabaianinha, deixando três filhos internos no colégio.

            Daí saí, coma volta da minha avó Justina e de Olímpia, para Cristina, onde retomaram a sua casa.

            Passei, como aluno externo, para a escola de dona Amância, de onde já se haviam retirado, prontos e aptos das primeiras letras, Pio e Manoel.

            Pio empregou-se em Alagoinhas, onde foi residir, e Manoel foi cursar as aulas do seminário em Salvador.

            As esperanças de meu a vô paterno, que o criara, cresceram, e, de novo queria ter o segundo padre na família.

            Neste colégio, afamado merecidamente, a professora dona Amância dedicava-se, de corpo e alma, à educação dos seus alunos. A fama já tinha transposto os limites do estado, tendo vindo da Bahia, inúmeros meninos ali cursar aulas.

            Fiz muito e rápido progresso nesse colégio, a ponto de ser considerado um dos melhores dos seus alunos.

            Todavia, de vez em quando, fazia má criação.

            De uma feita não sei por que fui castigado e preso, e, iludindo a vigilância, fugi.

            De outra, (o país estava autorizando os comerciantes a emitirem “ficha”, espécie de vale, moeda papel particular, nos valores de cem, duzentos, trezentos e quinhentos réis, as quais eram resgatadas, em moeda, a quem as apresentasse), achei no barracão da feira, uma delas de trezentos réis, emissão de Joaquim Amâncio, Monte Alegre. Foi uma alegria. Embrulhei-a num papel atado com linha, e escrevi, por fora do invólucro, o valor do conteúdo. Encerrei-a numa caixa de presente vazia, que também foi embrulhada com o mesmo cuidado e precaução, e, como se fosse um relógio, prendi-a numa corrente de barbante, amarrando-a na casa do botão do casaco, depositando-a no bolso de cima.

            Esses cuidados despertaram a atenção dos colegas de classe, avisados ainda pela notícia que lhes dera do meu tesouro (o dinheiro nosso era vinte e quarenta réis, no máximo). Trezentos réis equivale, hoje, a cinquenta contos.

            Os colegas ficaram lívidos e invejosos, era dinheiro demais e sorte imensa.

            Precisando ir fazer necessidades fisiológicas, tomei a “pedra-licença” e, com receio de perder o tesouro, ocultamente guardei-o no baú de flandres, onde trazia os livros escolares, e, por baixo deles, escondi,  com mil precauções, a caixa com os trezentos réis.

            De volta, com o coração a sair-me pela boca, fui desenterrar o tesouro.

            Oh! Céus! Lá não estava!

            Um suor frio percorreu-me o corpo, a vista escureceu-se-me.

            Ao recobrar os sentidos, lancei a vista e descobri o ladrão.

            Fui-lhe às goelas e, aos murros na luta em que me empenhava, caímos sobre o banco, fazendo um barulho enorme.

            A professora interveio escandalizada.

            Fomos chamados ao inquérito e o resultado foi que tomamos bolos e ambos ficamos presos. Eu, por que fui insubordinado, e ele por que foi gatuno.

            De outra vez, levei à escola os bolsos cheio de pipoca, e ao distribuí-la com a classe inteira, daí a pouco, só se ouvia o matraquear dos dentes no milho.

            Toda a classe foi castigada, e eu preso.

            Em dois anos de estágio neste magnífico colégio, verdadeira academia de bom proceder, aprendi o que sei, que nada é, e, ao término, a mestra disse ao meu pai:

            - O Chiquinho está prontinho para ingressar na vida prática, ou para ir cursar escola mais adiantada...


(MEMÓRIAS DE CHICO BENÍCIO)

Francisco Benício dos Santos

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