Ao completar
o meu quarto aniversário, morando com minha madrinha Olímpia, fui mandado à
escola do professor João da Matta, em Cristina, onde nada aprendi, nem as
letras do alfabeto.
Passava o
tempo todo na aula de boca aberta chupando o dedo, despreocupado e indiferente
ao ABC, cuja carta, um suplício para mim, vivia amarrotada entre as minhas mãos
sujas e suadas.
Deixavam-me
crescer os cabelos e sobre eles, davam um laço de fita adornando-os. Isto me
valeu a alcunha de “Chico Muié”, com a qual eu ficava furioso.
Um dia,
estava na escola sentado no banco de lado da parede, de costas para a rua, com
a boca aberta, como de costume, e com a terrível carta de ABC machucada entre
os dedos das mãos suadas, quando uma mosca vadia e malandra, sem mais
cerimônia, encontrando-a escancarada, embarafustou por ela adentro, e lá se foi
ao estômago. Vomitei a valer.
O professor
mandou-me, por um dos colegas, à casa, onde recebi tremenda vaia, e me
crismaram com um novo apelido: “boca aberta”.
Prometi a
mim mesmo corrigir-me. Nessa escola nada aprendi, e dela guardo breves
recordações, apenas traços da minha passagem.
Com a
minha saída da escola do professor Matta, mandaram-me para o professor Juvenal
José de Souza, onde já estavam os irmãos Pio e Manoel, como alunos internos.
Nessa fase
da minha vida, minha avó Justina tinha se mudado de Chapada e morava no
caminho, no Engenho D’água, em casa feita para ela especialmente, por meu pai.
Olímpia, porém, residia com minha família.
Na escola
do professor Juvenal também fiz muito
pouco progresso. Era péssimo estudante, e, quando recriminavam a minha moleza e
falta de inteligência, Olímpia tomava a minha defesa dizendo:
- Os
sentenciados são os que Deus favorece.
O futuro ia
confirmar a profecia do refrão.
Nessa escola,
deu-se um fato que provocou reprovações: num dia de aulas, o professor exasperou-se
com Pio, e batendo-lhe com a palmatória nas mãos, também o fez nas nádegas,
dando lugar ao protesto imediato de Manoel, que se achava presente, e já era
rapaz.
Meu pai
soube do ocorrido, ficou furioso e se não fosse a intervenção de pessoas amigas
e prestigiosas, o casa teria degenerado em sério conflito.
Saímos os
três da escola e fomos para a de dona Amância Francisca da Paixão, Manoel, Pio
e eu, porque era muito pequeno, fui para a escola de dona Adelina Freire de
Melo.
Ali passei
dois anos sem fazer nenhum progresso, a professora, muito carola, passava a
maioria do tempo em rezas e na igreja. Todos os dias, ia com os alunos internos à missa da manhã.
Frequentando
missa, cheguei a aprender trechos inteiros do latim.
Era vigário
o meu padrinho, Antonio Marcelino de Souza Leal, velhinho muito simpático e
limpo, acumulava funções de pároco e de delegado escolar, instrutor das crianças da escola, que lhe tinham um
respeito real.
Era aluno interno desse colégio, quando
se deu a revolução do coronel Valadão, que assumindo o governo de Sergipe,
derrubou a facção política do padre
Olímpio de Campos, chefe supremo da política sergipana, que gozava, em
Vila Cristina, de real e indiscutível prestígio.
Meu pai
era seu correligionário e, com ele, a maioria dos senhores de engenho,
inclusive, o célebre caudilho “Guinô da Furada”, em cujos limites soldados não
penetravam sem a sua prévia licença.
O major
Ernesto, pai do meu amigo Zacarias, era o chefe político de Itabaianinha,
cabeça da comarca, da qual dependia Cristina.
O Valadão,
coronel do Exército, para lá mandou cem praças, a fim de, pelo terror, manter a
sua própria política, e liquidar a do Padre Olímpio.
O principal
visado era o major Ernesto, chefe político e irmão do padre, que se viu na
contingência de fugir à perseguição da tropa, exilando-se em Vila Cristina, sob
a proteção de Guinô, seu amigo político e com real influência na política da
Bahia.
Data dessa
época o meu conhecimento com o amigo Zacarias Freire, por se haver hospedado na
casa do professor Adelino Freire, de quem a mãe de Zacarias era parente, o
major Ernesto com toda a família.
Serenados os
ânimos, volta para Itabaianinha, deixando três filhos internos no colégio.
Daí saí,
coma volta da minha avó Justina e de Olímpia, para Cristina, onde retomaram a
sua casa.
Passei,
como aluno externo, para a escola de dona Amância, de onde já se haviam
retirado, prontos e aptos das primeiras letras, Pio e Manoel.
Pio empregou-se
em Alagoinhas, onde foi residir, e Manoel foi cursar as aulas do seminário em
Salvador.
As esperanças de meu a vô paterno, que o
criara, cresceram, e, de novo queria ter o segundo padre na família.
Neste colégio,
afamado merecidamente, a professora dona Amância dedicava-se, de corpo e alma,
à educação dos seus alunos. A fama já tinha transposto os limites do estado,
tendo vindo da Bahia, inúmeros meninos ali cursar aulas.
Fiz muito
e rápido progresso nesse colégio, a ponto de ser considerado um dos melhores
dos seus alunos.
Todavia,
de vez em quando, fazia má criação.
De uma
feita não sei por que fui castigado e preso, e, iludindo a vigilância, fugi.
De outra,
(o país estava autorizando os comerciantes a emitirem “ficha”, espécie de vale,
moeda papel particular, nos valores de cem, duzentos, trezentos e quinhentos
réis, as quais eram resgatadas, em moeda, a quem as apresentasse), achei no
barracão da feira, uma delas de trezentos réis, emissão de Joaquim Amâncio,
Monte Alegre. Foi uma alegria. Embrulhei-a num papel atado com linha, e
escrevi, por fora do invólucro, o valor do conteúdo. Encerrei-a numa caixa de
presente vazia, que também foi embrulhada com o mesmo cuidado e precaução, e,
como se fosse um relógio, prendi-a numa corrente de barbante, amarrando-a na
casa do botão do casaco, depositando-a no bolso de cima.
Esses cuidados
despertaram a atenção dos colegas de classe, avisados ainda pela notícia que
lhes dera do meu tesouro (o dinheiro nosso era vinte e quarenta réis, no
máximo). Trezentos réis equivale, hoje, a cinquenta contos.
Os colegas
ficaram lívidos e invejosos, era dinheiro demais e sorte imensa.
Precisando
ir fazer necessidades fisiológicas, tomei a “pedra-licença” e, com receio de
perder o tesouro, ocultamente guardei-o no baú de flandres, onde trazia os livros
escolares, e, por baixo deles, escondi,
com mil precauções, a caixa com os trezentos réis.
De volta,
com o coração a sair-me pela boca, fui desenterrar o tesouro.
Oh! Céus!
Lá não estava!
Um suor
frio percorreu-me o corpo, a vista escureceu-se-me.
Ao recobrar
os sentidos, lancei a vista e descobri o ladrão.
Fui-lhe às
goelas e, aos murros na luta em que me empenhava, caímos sobre o banco, fazendo
um barulho enorme.
A professora
interveio escandalizada.
Fomos chamados
ao inquérito e o resultado foi que tomamos bolos e ambos ficamos presos. Eu, por
que fui insubordinado, e ele por que foi gatuno.
De outra
vez, levei à escola os bolsos cheio de pipoca, e ao distribuí-la com a classe
inteira, daí a pouco, só se ouvia o matraquear dos dentes no milho.
Toda a classe
foi castigada, e eu preso.
Em dois
anos de estágio neste magnífico colégio, verdadeira academia de bom proceder,
aprendi o que sei, que nada é, e, ao término, a mestra disse ao meu pai:
- O
Chiquinho está prontinho para ingressar na vida prática, ou para ir cursar
escola mais adiantada...
(MEMÓRIAS DE CHICO BENÍCIO)
Francisco Benício dos Santos
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