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quarta-feira, 17 de maio de 2017

NOTAS TRISTES – Por Helena Borborema



Notas Tristes


          O sino da Igreja Matriz de São José batia dolente, vagaroso, dando a notícia. Duas baladas vagarosas, pausa, mais outra badalada, se era homem; duas rápidas e uma vagarosa, se mulher. Pelo comunicado sonoro, a cidade ficava sabendo: morreu um de seus habitantes. A Igreja tinha a missão de anunciar pelo seu sino, a todos os fiéis, a morte de um de seus membros. O som do bronze que ressoava era triste, enchendo as pessoas de uma sensação de saudade daquele que se foi, mesmo um desconhecido. Como não havia telefone, nem rádio para divulgar, horas mais tarde um encarregado da família do morto ia de rua em rua, batendo de porta em porta, para entregar uma carta tarjada de preto. Dentro desta estava impresso em negrito a participação do óbito e o convite para o sepultamento, dizendo a hora e o local da saída do féretro. Estas cartas eram também coladas nos postes das ruas. Não havia na cidade quem não tivesse conhecimento do ocorrido. Na mesma semana repetia-se o ritual da entrega em domicílio de outra carta-convite para a missa de sétimo dia. Era a Itabuna da confraternização.

          Na minha meninice, alguns enterros e velórios tiveram particularidades que fizeram com que eu não os esquecesse.Uma delas foi no enterro do filho do Sr. Narciso, um vizinho nosso. O morto era um rapaz de uns dezoito ano e do fato só me lembro da saída do cortejo, que foi na minha rua. Uma grande multidão e a banda de música a tocar uma marcha fúnebre, cuja tristeza me impressionou. Aquele som ficou gravado em meus ouvidos de tal forma que, embora passados tantos anos, ainda o escuto quando me recordo da cena.
  
          Outra experiência triste foi os dois velórios aos quais a minha curiosidade me levou. Ainda na minha rua, morreu uma menina de uns dez anos. Eu tinha menos idade do que ela, uns sete, talvez. As nossas casas ficavam bem perto uma da outra. À tardinha, vi o movimento da casa enlutada, um entra-e-sai de gente, a chegada de bandejas de flores. Fiquei impressionada. Meninas também morriam. Aquela eu conhecera em vida, bonitinha, alva, cabelos negros ondulados e compridos. Nunca brincamos juntas, mas eu a conhecia, por isso fiquei triste.

          O enterro seria no dia seguinte pela manhã, ouvi dizer. Mas à noite, o que estaria ocorrendo? De mansinho, logo após o jantar, saí cautelosamente e corri para ver como era um velório. Entrei na casa sem que alguém desse pela minha presença. Estava tudo tão calmo, que logo acalmei também a minha curiosidade. O ambiente era quase de silêncio, falava-se baixo. Várias pessoas amigas, familiares tristes choravam baixinho e, na sala de visitas,, o caixão branco com a menina dentro, vestida de cetim branco em forma de túnica, os cabelos pretos sobre os ombros. Parecia dormir. Flores por todos os lados exalavam um perfume, que de mistura com o cheiro de velas acesas davam aquele odor característico de velório, de morte. Involuntariamente, deixei-me envolver por aquele odor e uma tristeza foi vagarosamente tomando conta de mim. Sem me dar conte, senti-me também parte daquele momento.
  
          Sentei-me numa cadeira e, silenciosa, me pus a olhar o trabalho que três mulheres executavam em torno da mesa da sala de jantar. Elas cortavam pequenas estrelas de papel prateado, que iriam adornar uma tira de cetim azul estendida sobre a mesa. Era uma espécie de manto  que iria revestir o corpo da menina, pois ela era um anjo do Senhor, ouvi o comentário. Quedei-me quieta a olhar com unção o manto de um anjo. Será que ela já está voando diante de Deus? De que seriam as penas das asas? Fiquei a imaginar. Deviam ser de penugem de galinha, porque são macias e leves. Logo me arrependi do pensamento. Era pecado pensar que anjo tivesse asas de penugem de galinha e que também nem era alva. Asas de anjo eram de algodão, alvas e macias como a dos anjos de procissão. E continuei quieta a olhar as estrelinhas prateadas que, uma a uma, iam caindo da ponta das tesouras, vendo a menina de túnica branca e manto azul estrelado cantando ciranda com um bocado de outros anjos no céu.

          O segundo velório foi de um menino cujos pais moravam na beira do rio, na atual Avenida Francisco Ribeiro Jr. Não sei mais quem me levou até lá. Este foi à tarde, e me impressionou porque nunca tinha visto se tirar retrato de defunto. Dentro do caixão destampado, o anjinho, como chamavam, estava pálido, cor de cera, e o fotógrafo a tirar sua fotografia. Vez por outra algumas famílias se davam a essa ideia mórbida de fotografar o ente querido dentro do esquife. Algumas até penduravam o retrato na parede.

          Muitos costumes passaram – ainda bem -, como o de dar banho no morto. Foram desaparecendo, com a evolução do tempo, modernidade dos conceitos e até dos sentimentos. O luto perpétuo das viúvas desapareceu. A mulher que perdia o marido se cobria de preto até o fim da sua vida, apenas podia aliviar o luto depois de muitos anos, com cores bem sóbrias. As cartas tarjadas de preto foram substituídas pelos comunicados rápidos e informais do rádio e do telefone. Os sinos já não tangem mais, plangentes, aos finados. A Igreja modernizou os seus cantos e rituais, hoje alegres e cheios de esperança na felicidade do céu, sem a solenidade lúgubre da  essa e do “miserere” das missas de antigamente, quando um catafalco coberto de preto era armado em frente ao altar e o sacerdote, também todo paramentado de preto, aspergia água benta, cantando em latim o “De profundis”.
  
          Atualmente, numa missa de finados todos cantam e se sentem confortados com a esperança na felicidade futura junto de Deus. Não se chega aos extremos dos fundamentalistas islâmicos que, além de se tornarem príncipes, os homens ainda encontram um harém de belas mulheres no céu de Alá. A nossa crença não chega a tanto, mas nos conforta profundamente. Até a cidade dos mortos, o Campo Santo, já não é hoje lugar de aspecto tão doloroso como antigamente. Em algumas cidades, basta se visitar um “Jardim da Saudade” para se sentir a imensidão da paz.

(RETALHOS)
Helena Borborema

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A TELMO PADILHA

          Poucas semanas antes de empreender a sua grande viagem, encontrei-me casualmente com o poeta Telmo Padilha, nas imediações da Praça Otávio Mangabeira, aqui na cidade. Na ligeira e amena conversa de encontro amigo, notei amargura em seu coração. Não que ele falasse de tristeza, eu é que a senti na sua alma. Nesse ligeiro encontro, ele perguntou-me por que eu não escrevia alguma coisa sobre Itabuna do passado, ligada às minhas lembranças de quando menina. A ideia não me animou. Fiz-lhe ver que isso de escrever ficava para os escritores e poetas, o que não era o meu caso. Ele insistiu. Nos despedimos. Não demorou e veio a tragédia da sua morte. Talvez por sentimentalismo a lembrança do seu pedido, para mim o “último” me acompanhou. Daí a razão
destas páginas de “Retalhos” em sua homenagem, escritas com a simplicidade com que os olhos e a alma de uma menina viram e sentiram a vida transcorrer no dia-a-dia da sua cidade.

          Ao amigo Telmo Padilha, inteligência que honra a nossa terra, enche os seus conterrâneos de orgulho, sensibilidade de grande artista das letras, que conseguiu através de suas belas poesias transmitir aos corações dos que as leem momentos de satisfação espiritual, o meu agradecimento pela bondade do seu incentivo, que me fez preencher horas ociosas com o prazer de recuar no tempo e voltar a uma infância lembrada com ternura.


Helena

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