Notas Tristes
O
sino da Igreja Matriz de São José batia dolente, vagaroso, dando a notícia.
Duas baladas vagarosas, pausa, mais outra badalada, se era homem; duas rápidas
e uma vagarosa, se mulher. Pelo comunicado sonoro, a cidade ficava sabendo:
morreu um de seus habitantes. A Igreja tinha a missão de anunciar pelo seu
sino, a todos os fiéis, a morte de um de seus membros. O som do bronze que
ressoava era triste, enchendo as pessoas de uma sensação de saudade daquele que
se foi, mesmo um desconhecido. Como não havia telefone, nem rádio para
divulgar, horas mais tarde um encarregado da família do morto ia de rua em rua,
batendo de porta em porta, para entregar uma carta tarjada de preto. Dentro
desta estava impresso em negrito a participação do óbito e o convite para o
sepultamento, dizendo a hora e o local da saída do féretro. Estas cartas eram
também coladas nos postes das ruas. Não havia na cidade quem não tivesse
conhecimento do ocorrido. Na mesma semana repetia-se o ritual da entrega em
domicílio de outra carta-convite para a missa de sétimo dia. Era a Itabuna da
confraternização.
Na
minha meninice, alguns enterros e velórios tiveram particularidades que fizeram
com que eu não os esquecesse.Uma delas foi no enterro do filho do Sr. Narciso,
um vizinho nosso. O morto era um rapaz de uns dezoito ano e do fato só me
lembro da saída do cortejo, que foi na minha rua. Uma grande multidão e a banda
de música a tocar uma marcha fúnebre, cuja tristeza me impressionou. Aquele som
ficou gravado em meus ouvidos de tal forma que, embora passados tantos anos,
ainda o escuto quando me recordo da cena.
Outra
experiência triste foi os dois velórios aos quais a minha curiosidade me levou.
Ainda na minha rua, morreu uma menina de uns dez anos. Eu tinha menos idade do
que ela, uns sete, talvez. As nossas casas ficavam bem perto uma da outra. À
tardinha, vi o movimento da casa enlutada, um entra-e-sai de gente, a chegada
de bandejas de flores. Fiquei impressionada. Meninas também morriam. Aquela eu
conhecera em vida, bonitinha, alva, cabelos negros ondulados e compridos. Nunca
brincamos juntas, mas eu a conhecia, por isso fiquei triste.
O
enterro seria no dia seguinte pela manhã, ouvi dizer. Mas à noite, o que
estaria ocorrendo? De mansinho, logo após o jantar, saí cautelosamente e corri
para ver como era um velório. Entrei na casa sem que alguém desse pela minha
presença. Estava tudo tão calmo, que logo acalmei também a minha curiosidade. O
ambiente era quase de silêncio, falava-se baixo. Várias pessoas amigas,
familiares tristes choravam baixinho e, na sala de visitas,, o caixão branco
com a menina dentro, vestida de cetim branco em forma de túnica, os cabelos
pretos sobre os ombros. Parecia dormir. Flores por todos os lados exalavam um
perfume, que de mistura com o cheiro de velas acesas davam aquele odor
característico de velório, de morte. Involuntariamente, deixei-me envolver por
aquele odor e uma tristeza foi vagarosamente tomando conta de mim. Sem me dar
conte, senti-me também parte daquele momento.
Sentei-me numa cadeira e, silenciosa, me pus a olhar o trabalho que três
mulheres executavam em torno da mesa da sala de jantar. Elas cortavam pequenas
estrelas de papel prateado, que iriam adornar uma tira de cetim azul estendida
sobre a mesa. Era uma espécie de manto que iria revestir o corpo da
menina, pois ela era um anjo do Senhor, ouvi o comentário. Quedei-me quieta a
olhar com unção o manto de um anjo. Será que ela já está voando diante de Deus?
De que seriam as penas das asas? Fiquei a imaginar. Deviam ser de penugem de
galinha, porque são macias e leves. Logo me arrependi do pensamento. Era pecado
pensar que anjo tivesse asas de penugem de galinha e que também nem era alva.
Asas de anjo eram de algodão, alvas e macias como a dos anjos de procissão. E
continuei quieta a olhar as estrelinhas prateadas que, uma a uma, iam caindo da
ponta das tesouras, vendo a menina de túnica branca e manto azul estrelado
cantando ciranda com um bocado de outros anjos no céu.
O
segundo velório foi de um menino cujos pais moravam na beira do rio, na atual
Avenida Francisco Ribeiro Jr. Não sei mais quem me levou até lá. Este foi à
tarde, e me impressionou porque nunca tinha visto se tirar retrato de defunto.
Dentro do caixão destampado, o anjinho, como chamavam, estava pálido, cor de
cera, e o fotógrafo a tirar sua fotografia. Vez por outra algumas famílias se
davam a essa ideia mórbida de fotografar o ente querido dentro do esquife.
Algumas até penduravam o retrato na parede.
Muitos costumes passaram – ainda bem -, como o de dar banho no morto. Foram
desaparecendo, com a evolução do tempo, modernidade dos conceitos e até dos
sentimentos. O luto perpétuo das viúvas desapareceu. A mulher que perdia o
marido se cobria de preto até o fim da sua vida, apenas podia aliviar o luto
depois de muitos anos, com cores bem sóbrias. As cartas tarjadas de preto foram
substituídas pelos comunicados rápidos e informais do rádio e do telefone. Os
sinos já não tangem mais, plangentes, aos finados. A Igreja modernizou os seus
cantos e rituais, hoje alegres e cheios de esperança na felicidade do céu, sem
a solenidade lúgubre da essa e do “miserere” das missas de antigamente,
quando um catafalco coberto de preto era armado em frente ao altar e o
sacerdote, também todo paramentado de preto, aspergia água benta, cantando em
latim o “De profundis”.
Atualmente, numa missa de finados todos cantam e se sentem confortados com a
esperança na felicidade futura junto de Deus. Não se chega aos extremos dos
fundamentalistas islâmicos que, além de se tornarem príncipes, os homens ainda
encontram um harém de belas mulheres no céu de Alá. A nossa crença não chega a
tanto, mas nos conforta profundamente. Até a cidade dos mortos, o Campo Santo,
já não é hoje lugar de aspecto tão doloroso como antigamente. Em algumas
cidades, basta se visitar um “Jardim da Saudade” para se sentir a imensidão da
paz.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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A TELMO PADILHA
Poucas
semanas antes de empreender a sua grande viagem, encontrei-me casualmente com o
poeta Telmo Padilha, nas imediações da Praça Otávio Mangabeira, aqui na cidade.
Na ligeira e amena conversa de encontro amigo, notei amargura em seu coração.
Não que ele falasse de tristeza, eu é que a senti na sua alma. Nesse ligeiro
encontro, ele perguntou-me por que eu não escrevia alguma coisa sobre Itabuna do
passado, ligada às minhas lembranças de quando menina. A ideia não me animou.
Fiz-lhe ver que isso de escrever ficava para os escritores e poetas, o que não
era o meu caso. Ele insistiu. Nos despedimos. Não demorou e veio a tragédia da
sua morte. Talvez por sentimentalismo a lembrança do seu pedido, para mim o
“último” me acompanhou. Daí a razão
destas páginas de “Retalhos” em sua
homenagem, escritas com a simplicidade com que os olhos e a alma de uma menina
viram e sentiram a vida transcorrer no dia-a-dia da sua cidade.
Ao amigo
Telmo Padilha, inteligência que honra a nossa terra, enche os seus conterrâneos
de orgulho, sensibilidade de grande artista das letras, que conseguiu através
de suas belas poesias transmitir aos corações dos que as leem momentos de
satisfação espiritual, o meu agradecimento pela bondade do seu incentivo, que
me fez preencher horas ociosas com o prazer de recuar no tempo e voltar a uma
infância lembrada com ternura.
Helena
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