A Moça de Janela
Todo dia
ele passava por ali, cedinho, quinze antes das oito; ia assinar o ponto no
banco onde trabalhava, gerenciado por um sujeito da cara amarela; “panhe aquela
ficha ali”. O cafezinho pela manhã e à tarde, os clientes.
Via, numa
janela da casa a esquerda, uma moça acotovelada, cabelo úmido jogado para um
lado; teria tomado banho naquele instante. Ela o olhava sorrateira, de banda,
sem levantar o rosto. Conhecia-a de
vista e sabia chamar-se Lindaura, provavelmente de Souza, vindo do pai de
prenome Estevão, comerciante conceituado no lugar, conhecido de ponta a ponta.
Uma vez
vira Lindaura participando de uma gincana pelo meio da rua, de short e camisa
de malha com uma frase em inglês no peito; fora disso, só acotovelada na
janela, pela manhã, na hora em que passava para o banco do gerente amarelo.
Sentia vontade de dar-lhe bom-dia, mas temia: sóbria, filha de Estevão de
Souza. Lindaura olhava para ele, de travessa, trejeitando os olhos; sentia-se
frustrado quando passava e não a via na janela; quando chovia, por exemplo; aí se
lembrava do cabelo jogado de banda, do olhar disfarçado; Lindaura não era
tola para se molhar.
Gostaria
de avistá-la todo dia à mesma hora, pouco antes das oito, com o cabelo úmido
saído a pouco do banho. Por que sentia falta de Lindaura a quem nem dava um
bom-dia? Hábito, costume de ver as coisas, as pessoas; tinha a certeza de vê-la
no lugar, todo dia, logo depois do “pelo Sinal” e do café com torradas de pão e
leite em pó; acendia um cigarro e saía cheio de curiosidade, esperando a
surpresa adiante; a surpresa era Lindaura na janela, misteriosa, atravessando
um olhar discreto, sutil, parecendo despretensiosa.
Do meio da
rua, nenhuma nitidez sobre o rosto dela
quase toda escondida, debruçada. Lembrava-a metida no short, de camisa
de malha com uma frase no peito, numa gincana pelo meio da rua; isso havia
algum tempo, a maior evidência, assim, era na janela, acotovelada, cabelo preto
jogado para um lado; teria as mãos suaves, bem-feitas; os dentes de brancura,
bem constituídos; olhos indefinidos, nem os sabia se brilhantes ou serenos,
pois furtivos, quase obscuros como nuvem distante. Ela seria meiga? Gostaria de
ter intimidade com Lindaura, mas sem maiores precipitações.
Agora,
passava e via, no lugar onde existira a casa dela, um edifício de três andares
moderno, de vidraças, de porte civilizado, sem imitação com a antiga residência
provinciana, demolida da Rua de Estevão de Souza então estabelecido
parede-meia, onde vendia secos e molhados por trás de um balcão de tábuas lisas
e grossas com mantas de carne seca, uma lata grande com manteiga a granel e uma
balança velha, enferrujada, com pesos de bronze enfileirados numa caixa de
madeira, começando por uma moeda de cobre de quarenta réis que valia vinte e
cinco gramas. A casa de Lindaura era azul; a porta, três janelas e as cornijas
cor-de-cinza; platibanda, com losangos e a data da construção – 1933. Germínio
tinha vontade de aproximar-se, fazer perguntas a Lindaura, comentar
acontecimentos; mas nem um bom-dia, temia o olhar sutil, ela seria pedante,
superior; filha de Estevão de Souza, comerciante conceituado na cidade. Agora
olhava o prédio no lugar onde fora a casa de Lindaura, vinte anos; em frente,
ainda algumas edificações daquele tempo, ajaneladas, de cornijas mas sem datas
de construção, pelos modelos deviam ser da mesma época da casa de Lindaura
antes do prédio de três andares.
Recordava
que nunca vira moça nenhuma nas janelas dessas casas, só em frente Lindaura de
cabelo preto jogado para um lado do rosto, olhar preguiçoso para o meio da rua
por onde ele passava, agora com o chão asfaltado, trânsito intenso de veículos,
lojas, camelôs pelos passeios.
Onde
andará Lindaura? As primeiras notícias depois que ela sumiu informavam que a
família havia se mudado para Salvador; depois, nunca mais soubera de coisa
nenhuma, veio o silêncio e ninguém mais falou sobre o assunto. Será que ela se
casou? Teria algum filho?
Bem que
ele teve palpite para aproximar-se e largar uma declaração de amor. “Sim”. Aí
afagaria as mãos de Lindaura que deveriam ser macias. O cabelo pendido para um
lado do rosto; beijaria os olhos dela no momento em que eles se desviassem para
o meio da rua por onde passava para assinar o ponto no banco do gerente
amarelo.
Subitamente
lembrava-se de tudo isso, sentindo Lindaura acotovelada na janela, de olhar
manso, nem o sabia se com alguma intenção; pedante, filha de Estevão de Souza,
sujeito conceituado no lugar.
(LINHAS INTERCALADAS- 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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