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terça-feira, 4 de abril de 2017

DIÁRIO DE VIAGEM – Francisco Benício dos Santos (2)

BORDO DO PEDRO II
2º DIA


Desperto.
Céu e mar.
O sol vem chamejando e lambendo as águas que arrepiadas se contraem, fugindo dos beijos doidos do astro rei.
Sineta de bordo...
Primeiro almoço. Lanço o meu olhar e só vejo fisionomias desconhecidas.
O mar está agitado.
A xícara dança em minhas mãos.
Meio tonto. O melhor é ir deitar...
Saio aos trancos, agarro-me aqui na borda do navio, ali numa cadeira, acolá no corrimão da escada. A porta do camarote afinal. Entro. Encerro-me no camarote.
Adormeço.
- Vossa Excelência não vai ao almoço?
- Não, prefiro servir-me aqui mesmo, traga o cardápio.
Almoço...
Vou espairecer no convés.
Crianças brincam nos cavalos e nos balanços.
Moças passeiam e flertam...
O mar está mais camarada.
O vento norte patrício sopra brandamente.
Doninhas aos pulos acompanham o navio, de vez em quando apresentam o dorso preto e mergulham.
Gaivotas passam voando, alvas, graciosas como minúsculos aviões-brinquedo.
Jantar.
Vou ao salão. Faço figura.
Estou amarinheirando-me.
Visito a biblioteca.
Uma surpresa: Livros de minha especialidade.
Livros de viagem ao Pacífico.
Serão meus cicerones, os meus camaradas, os meus melhores amigos.
Bandos de moçoilas espreitam-me.
Já descobriram que sou doutorado.
O anel simbólico denunciou-me.
Radiotelegrafista:
“Um telegrama para o doutor Isauro.
Abro. “Saudades, muitas saudades. Nísia”.
Outro mais: “Deus te guie e proteja, saudades, Míriam”.
Limpo furtivamente uma lágrima impertinente.
O coração está dolorido, penalizado...
Saudades! Amores! O que será?...
Olham-me e passam tagarelando.
Disfarço. Não as ouço. Não as vejo.
Ficam intrigadas.
Música.
A orquestra ataca uma valsa, um samba, uma rumba, um tango, uma marchinha carioca...
Dançam.
Indiferente nada ouço.
Passam e sussurram:
“Até parece viúvo! Será possível, tão novo?...”
Faço-me desentendido.
Tomo uma chaise-longue.
Leio.
Espiam-me. Observam-me.
- É poesia, arte ou ciência?
- Ah?! Desculpe-me.
- Leio Cícero.
- Chi! Cícero, o antigo?...
- Que barbaridade!...
- Acha gosto nestas leituras tão bolorentas?
O senhor ainda tão jovem...
- Os velhos têm o segredo da experiência.
Adoro-os.
Desconcertei-as.
Saem rindo e mofando...
O médico de bordo:
- Se me permite, falo ao Dr. Isauro.
- Para servir.
- Obrigado.
- Já o conhecia.
Os jornais da capital deram-nos a notícia da sua viagem-prêmio e pelo rádio de bordo em Belém, ouvimos o seu magnífico discurso na Academia.
Conversamos, trocamos ideias, ficamos amigos.
Os pares se machucavam com os volteios dos sambas e os balanços do mar.
Dez horas. Vou dormir.


(AQUARELAS E RECORDAÇÕES Capítulo XXII)

Francisco Benício dos Santos.

* * *

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