1888
5 de abril
Bons dias!
Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui,
chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para
voltar na outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro
cuidado é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa,
em resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo;
ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me com
tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este papel na
mão, mas ao seu vizinho. Ora bem!
Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto,
declaro que não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no
Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai fazer;
o melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o príncipe (sempre é bom
parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, e faz
lembrar um sujeito muito alto e louro, parecidíssimo com o Imperador, que há
cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour étonner de
bourgeois; os fiéis levavam a olhar para um e para outro, e a compará-los,
admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. São
gostos) de Bismark. O príncipe de Bismark tem feito tudo sem programa público;
a única orelha que o ouviu, foi a do finado Imperador, — e talvez só a direita,
com ordem de o não repetir à esquerda. O Parlamento e o país viram só o resto.
Deus fez programa, é verdade ("E Deus disse: Façamos o
homem à nossa imagem e semelhança, para que presida", etc. Gênesis, I,
26); mas é preciso ler esse programa com muita cautela. Rigorosamente, era um
modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz.
Sem aquele texto, nunca o homem atribuiria ao Criador, nem a
sua gaforinha, nem a sua fraude. É certo que a fraude, e, a rigor, a gaforinha
são obras do Diabo, segundo as melhores interpretações; mas não é menos certo
que essa opinião é só dos homens bons; os maus crêem-se filhos do Céu — tudo
por causa do versículo da Escritura.
Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá
virei uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se
lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem
despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho
papas na língua, e é para vir a tê-las
que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o que é;
eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não
marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era
serem iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber
nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro.
Um exemplo. O Partido Liberal, segundo li, estava encasacado
e pronto para sair, com o relógio na mão, porque a hora pingava. Faltava-lhe só
o chapéu, que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Saraiva (ambos da chapelaria
Aristocrata); era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa o carro do paço com
outra pessoa, e ele descobre que ou o seu relógio está adiantado, ou o de Sua
Alteza é que se atrasara. Quem os porá de acordo?
Foi por essas e outras que descri do oficio; e, na alternativa
de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa
menos. Aqui me terão, portanto, com certeza até à chegada do Bendegó, mas
provavelmente até à escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais
nada para os não aborrecer, e porque já me chamaram para o almoço.
Talvez o que aí fica, saia muito curtinho depois de
impresso. Como eu não tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a
letra de mão e a letra de forma.
Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para
que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só pode
calcular com letras de câmbio — trocadilho que fede como o Diabo. Já falei três
vezes no Diabo em tão poucas linhas; e mais esta, quatro; é demais.
Boas noites.
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Texto-fonte:
Obra Completa de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.
Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de
Janeiro, de 05/04/1888 a 29/08/1889.
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