Luzia
... a conversa do vigário com seu pai deu em nada. Severino,
o pai de Luzia, ficou furioso e disse para o vigário:
- Me
admira o senhor dar ouvido a uma maluqueira desta.
-
Severino, as coisas mudaram, não são mais com o nosso tempo.
- Para
mim, não. Enquanto for vivo ela não sai da minha casa.
- Ela ia
ficar trabalhando em casa de minha irmã. Ia ganhar mais do que aqui e ter um
trabalho mais suave.
- Ela tem
que trabaiar é comigo no roçado.
Depois
deste dia, o relacionamento de Luzia com os pais ficou muito difícil. Não
deixaram mais ela ir à vila. Começaram a pressioná-la para aceitar o Antonio
como namorado. Luzia, para voltar a ter a liberdade que tinha antes, resolveu
enfrentar o namoro. O Antonio era apaixonado por ela. Ela, porém, não lhe dava
confiança. Apenas tinha um pouco de carinho por ele. Não desistiu da idéia de
ir morar no Rio. Estava planejando sua fuga. Alice, uma companheira sua, ia
voltar para lá por aqueles dias a fim de reassumir o emprego. Combinou de ir
com ela. Acertaram tudo. Luzia tinha algum dinheiro e providenciou para comprar
a passagem, deveria viajar na terça feira. Naquele sábado, depois de ajudar a
mãe, chegou até a porta, olhou para o céu, olhou para o rio que passava em
frente, viu as baronesas enfeitando as águas. As galinhas d’água passeando por
cima daquele tapete lindo que mão nenhuma é capaz de bordar. Elas pulavam de
folha em folha. Com muito cuidado para não machucar as flores que estavam
desabrochando. Sentiu-se culpada. Foi até a beira do rio. Sentou-se em uma
pedra. Chorou muito. Quase que se arrependeu. Mas foi apenas por alguns
segundos. Saiu andando por dentro do rio. Parecia dar adeus e despedir-se
daquela água tão gostosa. Criou-se na beira daquele rio, ora com um anzol
tentando pescar alguma piaba, ora com o gererê a cata de camarão. Seu coração
parecia partir-se ao meio. Realmente era assim que se encontrava naquele
momento. Dividida. Uma parte dela ansiosa para partir. Sair para bem longe.
Conhecer o Rio de Janeiro. Conhecer o Pão de Açúcar, os artistas do rádio.
Namorar com os rapazes da Cidade Maravilhosa. Ganhar dinheiro. Outra parte dela
estava presa àquela região. Seus irmãos, seus pais, principalmente sua mãe.
Chorou mais uma vez.
O céu tão
bonito, tão azul! O sol tão forte com os raios dourados confundia-se com os
seus cabelos, como se quisesse presenteá-la na sua despedida. Ela passou as
mãos pelos cabelos e os sentiu muito quentes. Pensou: como estão quentes os
meus cabelos! Vou molhá-los. Sentou-se em uma pedra, passou a mão molhada no
rosto e depois nos cabelos. Voltou para casa mais tranquila. No caminho,
encontrou Antonio que voltava do roçado. Ficou assustada ao vê-lo, parecia que
ele estava adivinhando o seu pensamento.
- Luzia,
você por aqui?
- Fui até
a beira do rio. Tava muito quente.
- É, Tá um
calor danado. Hoje é lua cheia. Vamos dar um passeio hoje à noite? Vamos ver a
lua dentro do rio? É uma beleza.
- Tá
certo. Passe lá em casa pro me pegar. Antonio estava ansioso. Luzia nunca tinha
ido a um passeio à noite com ele. Sempre arranjava uma desculpa. Mas naquele
momento, Luzia achou que devia compensá-lo. Era uma maneira de descarregar a
sua culpa. Na hora combinada, lá estava Antonio, com a camisa mais nova. O
cabelo encharcado de brilhantina, muito usada naquela época. Só que dado ao
entusiasmo de parecer mais bonito, exagerou. Luzia também se fez bonita para
agradar Antonio. Este quando a viu, exclamou:
- Que
boniteza! Como você está linda!
- Vamos, senão
fica tarde. O pai não quer que eu chegue tarde.
Saíram
abraçados. Luzia queria ao menos, naquela noite, fazê-lo feliz. Parece que
conseguiu. Passearam ao longo do rio. A lua parecia ter sido encomendada. Com
todo o seu encanto, derramava raios de luz sobre aqueles jovens. Tentava assim
fazer um milagre. Um milagre de amor: encantar Antonio aos olhos de Luzia.
Fazer dele o seu amado. Mas, coitada da lua! Não pôde realizar o milagre.
- Não sei
como tu pensou em deixar a nossa terrinha, disse Antonio, olhando com muito
amor para sua amada, que não lhe correspondia.
Luzia,
pela primeira vez, se emocionou. Pôde constatar naquele momento, quanto ia
maltratar o pobre coitado. Mas, nem assim, se arrependeu do que havia
planejado. Ficou firme. Desmanchou-se em ternura. Sentados em uma pedra,
próximo ao rio, ela colocou a cabeça dele no colo. Com muito carinho, passava
as mãos pelos cabelos encharcados de brilhantina. Nem se preocupava de lambuzar
as mãos. Trocaram beijos. Ela percebendo que as manifestações de carinho
estavam aumentando, tratou de fugir.
- Vamo nego, o pai deve está com o
olho na estrada. Deixaram o rio. A lua, porém, os acompanhou, tentando mais uma
vez abrandar o coração de Luzia. No meio da estrada, Antonio deu um abraço
cheio de paixão que foi correspondido pela sua amada. Continuaram abraçados até
em casa. Severino estava na porta esperando pelos noivos. Não ficou nada
satisfeito. Não reclamou. Disse apenas para Luzia:
- Entra
pra dentro, menina, sua mãe e seus irmãos já estão dormindo. Boa noite,
Antonio. Amanhã nós tá lhe esperando.
- Inté
manhã, seu Severino.
- Inté
amanhã, meu fio. Vá com Deus.
Antonio
foi para casa muito contente. Luzia, pelo menos, naquela noite, fizera-o feliz.
Ela, no entanto, estava triste. Não conseguiu dormir. Estava muito ansiosa.
Naquele
domingo, Antonio foi almoçar em casa da noiva. Durante o almoço, marcaram o
casamento. Deveria ser daí a dois meses. Antonio saiu da casa de Luzia muito
contente. O pobre não podia avaliar o que lhe aguardava. Luzia foi dormir cedo.
No outro dia, iria à cidade, já havia avisado ao Antonio. Desta vez, levou uma
sacola cheia de roupa. Ficou o tempo necessário para tomar conhecimento de tudo
sobre a viagem. Deveria ser daí a dois dias. Voltou o mais rápido possível. Na
hora que Antonio chegou do campo, Luzia foi esperá-lo. Voltaram conversando e
ela avisou-o que precisaria voltar à cidade. Ele concordou, pois confiava na
noiva. Não podia imaginar nunca o que ela estava planejando. Na véspera, ela
quase não dormiu. Mesmo assim levantou cedo. Antes de sair, fez o café e encheu
os potes d’água. Sua mãe perguntou-lhe:
- Pruquê
este madrugueiro, menina?
- Tenho
que chegar bem cedo, vou voltar cedo.
- É mesmo,
fia. Faz bem, mode não aborrecer Antonio.
Chegou
rápido em casa de Alice. Antes da hora, as duas já estavam na parada do ônibus.
Apesar de estar realizando um desejo muito antigo, ia com o coração
despedaçado.. Chorou a viagem toda. Sua amiga reclamava:
Não sei
por que motivo você chora tanto.
- Estou
com pena da mãe. Fui muito má. Não sei como pode fazer tanta maldade. E o pobre
do Antonio?
- Agora
não adianta mais. Vamos pra diante. Foi isto que fizeram. Seguiram em frente.
Rumo à Cidade Maravilhosa. Chegaram às 12 horas. Nesta época, a Rodoviária era
na praça Mauá. Luzia, nesta altura, já não chorava. Os olhos muito abertos
assombrados, admirava aquele cinema ao vivo em sua frente.
- Vamos,
muié, pegue a sacola. Vamos pegar o ônibus.
- Outro
ônibus? ! Já tô cansada de tanto andar de ônibus.
- Você
quer ir de pé? É longe, disse Alice, rindo de sua amiga. Depois de Alice ter
chegado a seu destino, tratou de levar sua amiga na casa onde Luzia ia
trabalhar. Deixou-a aí, e foi cuidar da vida. Luzia, depois de ter conversado
com sua patroa, entrou para o quarto onde deveria dormir. Enfrentou a
realidade. Chorou. Sentiu saudades do quarto onde dormia. Pobrezinho, mas muito
melhor do que aquele. Era bem maior. Tinha uma janela que vivia sempre aberta.
Olhou para as paredes daquele pequeno cubículo, não tinha janela. Tinha um
basculante que ela não conhecia. Subiu na cama para descobrir o que havia em
frente. Deu com a parede cinzenta do prédio vizinho. Sentou-se na cama e
chorou.
- Meu
Deus, que arrependimento! Se meu pai me perdoasse, voltaria para casa. O que
vai ser de mim?
Resolveu
arrumar a roupa no pequeno armário do quarto. Ainda com a porta fechada,
deitou-se e adormeceu. Acordou com a patroa chamando:
- Você não
quer tomar banho? Tome banho e depois coma alguma coisa. Deve estar muito
cansada. Hoje não, precisa fazer nada. Amanhã a gente conversa. Temos tempo
bastante.
Luzia ficou
animada. Tomou banho. Era a primeira vez que tomava banho de chuveiro. Mas não
disse nada. A patroa mostrou-lhe como abrir a bica. Não quis comer. Deitou-se e
dormiu profundamente.
Enquanto
isso, os seus pais depois de procurarem em todos os lugares, foram até a
delegacia. Deram queixa. Queriam que o delegado providenciasse a volta de
Luzia. Nada conseguiram, Luzia era maior de idade. Severino quis culpar o
vigário. Saiu reclamando da Igreja:
- Se o senhor não tivesse dado atenção,
ela não tinha feito o que fez. É isto que dá muita leitura. Não pensei que
minha fia fizesse uma coisa desta com nós. Nunca mais quero botar os óio nela.
Quem mais
sofreu foi o Antonio. Fazia pena vê-lo. Não falava com ninguém. Cabisbaixo.
Fumando o seu cigarrinho de palha, olhava para o céu, como se este pudesse
informar alguma coisa. Se fosse hoje, diríamos que estava deprimido. Naquela
época, não se falava em depressão. E Antonio não tinha tempo para isto. Cedo,
com a foice no ombro, seguia para o campo. Chorava às escondidas. Era feio um
homem chorar. Nas noites de luar, ia sozinho para a beira do rio. Ali sentado
onde tinha estado com Luzia algum tempo atrás, tendo como companhia a lua,
curtia a sua dor. A lua também chorava com ele. Mas ele não via as lágrimas
dela. Ela estava muito distante. Antonio, porém, compreendia que os seus
sentimentos eram percebidos pela rainha da noite. Consolava-se ao pensar nisto.
Não sabia fazer poesia. Mas dentro dele havia muita poesia. Naquele momento,
olhava para a lua refletindo sua luz dentro da água. Lembrava-se da última
noite, quando com Luzia admirava aquela mesma lua. Não havia ninguém ali, por
isso pôde dar vazão aos seus sentimentos. Chorou muito. Chorou como uma
criança. Como foi bom chorar. Sentiu-se leve. Voltou para casa bem melhor.
Triste, mas confortado.
O tempo
passou. Antonio aos poucos foi superando o sofrimento. Casou-se, teve filhos.
Tentava ser feliz e fazer sua companheira feliz. Mas sempre tinha a lembrança
de Luzia presente em sua memória, e naquele dia esta lembrança estava mais
viva.
Luzia ao
enfrentar a morte não teve medo. Não estava só. Um grupo de pessoas conhecidas
veio visitá-la naquela madrugada: seu pai, seus avós e alguns amigos. Pôde
perceber que estava partindo para bem longe dali.
Nos
momentos de lucidez, rezava muito. Lembrava daquilo que aprendera nas aulas de
catecismo, em sua terra, quando menina. No seu encontro com a morte sentiu-se
lúcida. Rezou. Apesar de ter perdido a voz e não pronunciar nenhuma palavra, em
seu pensamento veio as palavras pronunciadas pelo Cristo na hora da morte. “Em
vossas mãos entrego o meu espírito”.
Deus, que
é Pai e justo, recebeu realmente o seu espírito. Naquele momento, ela foi
escolhida pelo Criador. Quando as suas vizinhas chegaram, há muito não estava
ali, apenas o seu corpo deformado pela fome e sofrimento estava ali presente.
Enquanto
as pessoas discutiam e planejavam o que fazer, Luzia resolveu dar um passeio,
rever as amigas. Foi até a sua terra. Todas com filhos já crescidos. Luzia
sentou-se na pedra em que costumava ficar. Teve vontade de comunicar-se com
elas, mas não foi possível. Pensou tanto que conseguiu transmitir a uma das
amigas o seu desejo.
- Gente
parece que vi Luzia ali, sentada naquela pedra. Quem sabe não morreu! ? Luzia
saiu dali e foi até a sua casa. Avistou sua mãe bastante envelhecida, cheia de
netos. Ficou feliz em saber que ela estava bem. Depois resolveu procurar
Antonio. Ele ia saindo para o roçado. Achou graça quando o viu com uma mulher e
os filhos. Resolveu puxar-lhe os cabelos como costumava fazer.
- Maria,
você puxou meu cabelo?
- Tá doido? Eu não. Tô tão longe de você.
- Credo.
Senti o cheiro de Luzia. Será que morreu? Resolveu voltar para o Rio. Ria e ria
muito ao constatar a confusão que todos faziam em torno de sua morte. As suas
amigas lamentavam:
- Coitada!
Morreu tão só! Como vamos enterrá-la? Josefa lembrou-se de avisar ao antigo
vigário que, durante alguns anos, pagara sua luz, todas as vezes, que era
cortada. Atualmente Luzia vivia no escuro. Nunca mais achou quem lhe pagasse a
conta de luz.
O padre
assim que soube do ocorrido providenciou o enterro. Ali, junto ao corpo,
celebrou a missa em sua memória. Na homilia foi muito feliz. Em sua mensagem
disse:
- Meus
amigos tenho certeza que a nossa amiga descansa junto ao Pai. Aquela, que viveu
durante 6 anos sem a luz dos homens está sendo iluminada pela luz divina.
Peço-lhe, Luzia, que me perdoe e, aí junto a Deus, peça perdão também por mim.
Pela minha omissão. Nunca mais a procurei. Não sabia o que era feito de você.
Interceda junto ao Pai por todos nós. Que sejamos iluminados pela luz da fé.
Que a luz elétrica não atrapalhe a luz interior. – “Vós sois a luz do mundo”,
diz o Cristo. Esta luz da qual o Cristo fala é a luz interior, é a luz que está
dentro de nós. Precisamos mantê-la acesa. Os homens não podem cortá-la. Não
custa dinheiro. Luzia, apesar
da loucura, não deixou que ela se apagasse. Esta missa é por ação de graça. Ela
não precisa mais de nossas orações. Peça, Luzia, que os homens que ainda não
conseguiram ter esta luz acesa em seu interior, que a tenham agora. Que sejam
iluminados. Só assim, poderão aliviar o sofrimento de nossos irmãos. Quantas
‘Luzias’ existem precisando de um pouco de conforto. Dê-lhes um pedaço de pão.
Luzia,
ironizando, disse: - Precisei morrer pra ser lembrada.
Você ainda
depois de morta foi lembrada, Luzia. Há aqueles que morrem como viveram, no
anonimato.
- “Morreu
na contramão atrapalhando o tráfego”.
Mas,
voltando à terra de Luzia. Sua visita, depois de morta, causou confusão.
Pensando no que acontecera naquela manhã, Antonio foi até a casa de D. Antonia,
mãe de Luzia.
- Tarde, D. Antonia.
- Tarde,
meu fio. Vamos cume um feijãozinho?
- Não,
brigado. Maria tá me esperando. Vim té aqui porque aconteceu umas coisas
esquisitas comigo.
- Que foi,
meu fio? Conte logo.
- Quando
ia pra o roçado, senti alguém puxá meu cabelo. Acho que era Luzia. Era como
fazia pra me assustar. Penso que morreu e veio-me avisá.
- Sabe que
hoje de manhã, parecia que tava aqui em casa. As menina, no rio, também parecia
que viram mia fia. Vieram té qui me contá. Agora vem você com esta conversa.
Acho que morreu memo. Agora só vou vê mia fia depois que morrê.
Ficou triste. Pensativa por alguns minutos. Depois olhou para o céu e disse:
- Deus lhe dê o céu!
- Amém! Respondeu Antonio.
Marília Benício dos Santos
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