Uma Vida, um Ideal
Naquele 1º de maio de 1883, a Rua dos Capitães, em Salvador,
acordara, como de costume, embalada pela voz cantante das negras vendedoras de
mingau, cuscuz e acaçá, que de saias rodadas, turbantes muito alvos e enormes
tabuleiros, passavam mercando suas guloseimas pelos passeios dos velhos e
sonolentos sobrados. No mais, era a quietude gostosa da provinciana cidade no
seu amanhecer. Mas, num dos sobrados da rua, havia um contentamento rodo
particular entre seus moradores: acabara de nascer, para o casal Dr. Emygdio de
Borborema (médico e Oficial da Marinha) e dona Adelaide de Borborema, o seu
primeiro filho, que recebera meses mais tarde, na pia batismal, o nome de
Lafayette.
Com poucos meses, foi o garoto batizado na velha igreja da
Sé, tendo como padrinhos seus tios paternos, dona Emerlina de Borborema, e o
Dr. Colatino de Borborema (médico) e, como madrinha de carrego, sua avó dona
Carolina de Borborema. Foram também seus tios o Dr. Augusto de Borborema, Juiz
de Direito e mais tarde Desembargador em Belém do Pará, e o Capitão Tranquilino
de Borborema, que tomara parte ativa na guerra do Paraguai.
Iniciado nas primeiras letras foi o menino Lafayette cursar
o Colégio São Salvador, que tinha como Diretor o Dr. Adolfo Frederico Tourinho
e onde fez todo o primário, concluindo-o com distinção de novembro de 1894.
Terminada essa primeira fase de seus estudos e feito os Preparatórios,
ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, onde colou grau de Bacharel em
Direito no dia 11 de dezembro de 1905.
O amor pela carreira que abraçara era uma constante em sua
vida, tendo logo se iniciado na prática da advocacia, preparando-se, ao mesmo
tempo, para o cargo de Promotor do Estado do Paraná, para o qual tinha recebido
um convite. Mas o destino tem as suas teias como as de um imenso aranhol.
Uma noite, em visita à casa de uma família amiga, foi o
jovem recém-formado apresentado a um moço que tinha uma farmácia num arraial
chamado TABOCAS, no Município de Ilhéus. Descreveu-lhe o recém-apresentado o
que era o arraial: uma casa aqui, outra acolá. Terra de barulho e muito tiro,
de jagunços que matavam, invadiam fazendas, incendiavam propriedades. E onde
praticamente não havia Lei.
Passaram-se meses. A descrição daquela terra sem lei,
violenta, calara no espírito do jovem advogado.
Um dia soube que o arraial de Tabocas desmembrado do
Município de Ilhéus, havia passado a Vila e Termo com o nome de ITABUNA,
(setembro de 1906), e que o Juiz Preparador havia deixado o cargo logo depois
de empossado. O seu idealismo mostrava-lhe que aquela era a terra onde havia de
trabalhar. A sua arma não seria o trabuco, mas a pena, pois no papel estava a
grande arma e no Direito a grande força. Foi então ao governador do Estado
pedir a sua nomeação para aquela vaga. Respondeu-lhe S. Excia. Que, dada a
violência da política naquela vila, ele era muito jovem para ocupar o cargo.
Quis ainda o destino que o jovem Lafayette se encontrasse
pouco depois com um colega de turma, a quem falou de sua frustração de não
poder trabalhar na vila de Itabuna.
- Por isso não, disse-lhe o amigo. Está aqui, na capital, o
mais importante chefe político da Vila, a quem posso lhe apresentar, pois uma
filha dele é casada com um parente meu.
Tudo combinado. A esperança renasce. Não demorou e as
apresentações foram feitas.
O encontro se deu num Cartório de Salvador.
- Dr. Lafayette, este senhor aqui é um importante político
no Sul, Coronel FIRMINO ALVES, um dos fundadores de Tabocas.
- Muito prazer, Coronel. Gostei muito de ser apresentado ao
senhor, pois soube que foi instalado o Termo de Itabuna e eu pretendia advogar
por lá.
- Doutor, o senhor é muito moço. Mas estamos precisando de
advogado naquelas bandas. Se quiser ir para lá, estou ao seu dispor no que
possa ser útil.
- E o que tem de bom por lá, Coronel?
- Só o rio Cachoeira, para se tomar banho. – E sorriu -, o
convite está feito. Se quiser, poderemos ir juntos na próxima semana, quando
embarco para lá. Sabe, o transporte é muito difícil, se perdermos a próxima
barcaça só daqui a um mês passará um vapor. Aqui está o meu endereço em
Salvador, onde pode me procurar caso resolva mesmo ir.
O jovem Doutor não dormiu direito aquela noite. Iria
conhecer de perto a tão decantada terra de violências e política acirrada.
Urgia uma resposta definitiva, pois o Coronel Firmino estava
prestes a voltar. Mas a opinião da família pesava. Enfim, tratava-se do Sul do
Estado, onde a comunicação não era fácil, vapor só de mês em mês e a fama era a
pior possível.
Com determinação, o jovem Lafayette logrou a compreensão da
família com uma promessa: retornar a Salvador, dentro de um ano, caso não se
desse bem.
Era a primeira vez que ia deixar a sua querida Bahia, a sua
família e também a primeira vez que se metia em tamanha aventura. Tinha 24 anos
incompletos.
No segundo encontro com o Coronel Firmino Alves, ficou tudo
acertado, dia da viagem, meios de transporte e hospedagem.
O que motivava o jovem advogado nestas terras do Sul?
Desejo de riqueza? Não. Nunca pensou nisso. O dinheiro nunca
cegou os seus olhos.
Ambição política? Também não. Caráter por demais íntegro,
espírito reto para se imiscuir nas artimanhas da política de então.
Mas a vila de Itabuna não era uma aventura às cegas.
Temperamento tranquilo, ponderado, o jovem Lafayette veio consciente da
seriedade do passo que ia dar, dos perigos que ia enfrentar, dos riscos que
corria numa terra onde cada “pé de pau” podia representar a morte, onde as
“repetições” eram arrastadas ostensivamente pelas ruas enlameadas, onde facções
políticas se digladiavam e onde a vida de um homem valia tanto quanto a vida de
um passarinho. Era o domínio da prepotência, da força do poderoso contra o fraco.
Ao tomar a decisão de embarcar, estava trocando o conforto
da família pela simplória pensão se seu Osório. A tranquilidade da sua Bahia
pelos sobressaltos dos tiroteios e assassinatos da vila.
Só quem faz da sua profissão um ideal, só quem é capaz de
enfrentar a violência física tendo como arma unicamente a força moral, só quem
é capaz de lutar contra os prepotentes em defesa dos fracos com a fé inabalável
na Justiça pode ter coragem de enfrentar com destemor situações tão adversas.
Só o idealismo de quem acredita na força da justiça e faz do Direito o apanágio
de sua vida.
(LAFAYETTE DE BORBOREMA - UMA VIDA, UM IDEAL)
Helena Borborema
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“Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’” (Cyro de Mattos).
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