Total de visualizações de página

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

UMA VIDA, UM IDEAL – Por Helena Borborema (I)

Uma Vida, um Ideal


          Naquele 1º de maio de 1883, a Rua dos Capitães, em Salvador, acordara, como de costume, embalada pela voz cantante das negras vendedoras de mingau, cuscuz e acaçá, que de saias rodadas, turbantes muito alvos e enormes tabuleiros, passavam mercando suas guloseimas pelos passeios dos velhos e sonolentos sobrados. No mais, era a quietude gostosa da provinciana cidade no seu amanhecer. Mas, num dos sobrados da rua, havia um contentamento rodo particular entre seus moradores: acabara de nascer, para o casal Dr. Emygdio de Borborema (médico e Oficial da Marinha) e dona Adelaide de Borborema, o seu primeiro filho, que recebera meses mais tarde, na pia batismal, o nome de Lafayette.

          Com poucos meses, foi o garoto batizado na velha igreja da Sé, tendo como padrinhos seus tios paternos, dona Emerlina de Borborema, e o Dr. Colatino de Borborema (médico) e, como madrinha de carrego, sua avó dona Carolina de Borborema. Foram também seus tios o Dr. Augusto de Borborema, Juiz de Direito e mais tarde Desembargador em Belém do Pará, e o Capitão Tranquilino de Borborema, que tomara parte ativa na guerra do Paraguai.

          Iniciado nas primeiras letras foi o menino Lafayette cursar o Colégio São Salvador, que tinha como Diretor o Dr. Adolfo Frederico Tourinho e onde fez todo o primário, concluindo-o com distinção de novembro de 1894. Terminada essa primeira fase de seus estudos e feito os Preparatórios, ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, onde colou grau de Bacharel em Direito no dia 11 de dezembro de 1905.

          O amor pela carreira que abraçara era uma constante em sua vida, tendo logo se iniciado na prática da advocacia, preparando-se, ao mesmo tempo, para o cargo de Promotor do Estado do Paraná, para o qual tinha recebido um convite. Mas o destino tem as suas teias como as de um imenso aranhol.

          Uma noite, em visita à casa de uma família amiga, foi o jovem recém-formado apresentado a um moço que tinha uma farmácia num arraial chamado TABOCAS, no Município de Ilhéus. Descreveu-lhe o recém-apresentado o que era o arraial: uma casa aqui, outra acolá. Terra de barulho e muito tiro, de jagunços que matavam, invadiam fazendas, incendiavam propriedades. E onde praticamente não havia Lei.


          Passaram-se meses. A descrição daquela terra sem lei, violenta, calara no espírito do jovem advogado.


          Um dia soube que o arraial de Tabocas desmembrado do Município de Ilhéus, havia passado a Vila e Termo com o nome de ITABUNA, (setembro de 1906), e que o Juiz Preparador havia deixado o cargo logo depois de empossado. O seu idealismo mostrava-lhe que aquela era a terra onde havia de trabalhar. A sua arma não seria o trabuco, mas a pena, pois no papel estava a grande arma e no Direito a grande força. Foi então ao governador do Estado pedir a sua nomeação para aquela vaga. Respondeu-lhe S. Excia. Que, dada a violência da política naquela vila, ele era muito jovem para ocupar o cargo.

          Quis ainda o destino que o jovem Lafayette se encontrasse pouco depois com um colega de turma, a quem falou de sua frustração de não poder trabalhar na vila de Itabuna.

          - Por isso não, disse-lhe o amigo. Está aqui, na capital, o mais importante chefe político da Vila, a quem posso lhe apresentar, pois uma filha dele é casada com um parente meu.

          Tudo combinado. A esperança renasce. Não demorou e as apresentações foram feitas.

          O encontro se deu num Cartório de Salvador.

          - Dr. Lafayette, este senhor aqui é um importante político no Sul, Coronel FIRMINO ALVES, um dos fundadores de Tabocas.

          - Muito prazer, Coronel. Gostei muito de ser apresentado ao senhor, pois soube que foi instalado o Termo de Itabuna e eu pretendia advogar por lá.

          - Doutor, o senhor é muito moço. Mas estamos precisando de advogado naquelas bandas. Se quiser ir para lá, estou ao seu dispor no que possa ser útil.

          - E o que tem de bom por lá, Coronel?

          - Só o rio Cachoeira, para se tomar banho. – E sorriu -, o convite está feito. Se quiser, poderemos ir juntos na próxima semana, quando embarco para lá. Sabe, o transporte é muito difícil, se perdermos a próxima barcaça só daqui a um mês passará um vapor. Aqui está o meu endereço em Salvador, onde pode me procurar caso resolva mesmo ir.

          O jovem Doutor não dormiu direito aquela noite. Iria conhecer de perto a tão decantada terra de violências e política acirrada.

          Urgia uma resposta definitiva, pois o Coronel Firmino estava prestes a voltar. Mas a opinião da família pesava. Enfim, tratava-se do Sul do Estado, onde a comunicação não era fácil, vapor só de mês em mês e a fama era a pior possível.

          Com determinação, o jovem Lafayette logrou a compreensão da família com uma promessa: retornar a Salvador, dentro de um ano, caso não se desse bem.

          Era a primeira vez que ia deixar a sua querida Bahia, a sua família e também a primeira vez que se metia em tamanha aventura. Tinha 24 anos incompletos.

          No segundo encontro com o Coronel Firmino Alves, ficou tudo acertado, dia da viagem, meios de transporte e hospedagem.

          O que motivava o jovem advogado nestas terras do Sul?

          Desejo de riqueza? Não. Nunca pensou nisso. O dinheiro nunca cegou os seus olhos.

          Ambição política? Também não. Caráter por demais íntegro, espírito reto para se imiscuir nas artimanhas da política de então.

          Mas a vila de Itabuna não era uma aventura às cegas. Temperamento tranquilo, ponderado, o jovem Lafayette veio consciente da seriedade do passo que ia dar, dos perigos que ia enfrentar, dos riscos que corria numa terra onde cada “pé de pau” podia representar a morte, onde as “repetições” eram arrastadas ostensivamente pelas ruas enlameadas, onde facções políticas se digladiavam e onde a vida de um homem valia tanto quanto a vida de um passarinho. Era o domínio da prepotência, da força do poderoso contra o fraco.

          Ao tomar a decisão de embarcar, estava trocando o conforto da família pela simplória pensão se seu Osório. A tranquilidade da sua Bahia pelos sobressaltos dos tiroteios e assassinatos da vila.

          Só quem faz da sua profissão um ideal, só quem é capaz de enfrentar a violência física tendo como arma unicamente a força moral, só quem é capaz de lutar contra os prepotentes em defesa dos fracos com a fé inabalável na Justiça pode ter coragem de enfrentar com destemor situações tão adversas. Só o idealismo de quem acredita na força da justiça e faz do Direito o apanágio de sua vida.


(LAFAYETTE DE BORBOREMA - UMA VIDA, UM IDEAL)
Helena Borborema

-----------


HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do Município. (A autora)
“Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’” (Cyro de Mattos).


* * *

Nenhum comentário:

Postar um comentário