Foto: Uesc.com
A lição das águas
Parecia um sonho, talvez pesadelo. A água não respeitava nem
o sono do Governador, que deve ser respeitado até debaixo d’água. Dir-se-ia que
o Cachoeira queria lavar a cidade toda, castigá-la por seu trabalho diuturno
ou, talvez, pela maldade escondida dos homens, que só o rio conhece e conta aos
poetas na madrugada de lua cheia. O Cachoeira era leito de dor e de miséria.
Caminho obrigatório por onde passavam geladeiras, pneus, móveis, árvores,
corpos de homens e animais, o desespero e o pavor de muitos. Estranha procissão
de desesperanças. Os Sete Cavaleiros do Apocalipse cavalgavam em velozes
corcéis negros sobre as águas de um rio furioso. O povo flagelado, vestido como
se fosse a um baile psicodélico, ouvia aflito, as vozes dos gigolôs da miséria
coletiva. As “otoridades” estavam mais perplexas do que o povo. Atônitas e
inertes.
Só existia a água do rio em acrobacias mortais e a
solidariedade do povo, que saía do céu e da terra, de lugares sem fim, salvando
coisas e gente. O rio não respeitava ninguém. Farmácia, loja, bar, cinema. Até
Lampião e Maria Bonita foram tragados pelas águas, disparando pela Avenida Cinquentenário,
armados até os dentes, e seguidos de todo o bando, segundo presenciou Marcinho
Mendonça, que está vivo e não me deixa mentir.
Quando as águas baixaram, os políticos já discutiam quem
seria o presidente da “comissão”. As mulheres ”políticas” arengavam na
distribuição dos víveres. Cada qual queria ser mais atuante. Era a usura da
generosidade. No desvario da irresponsabilidade, o novo material da Telefônica
foi destruído, numa zona onde a água demorou de chegar.
As lágrimas dos pobres que perdiam o barraco aumentavam a
fúria do rio. O Cachoeira ficou louco de pedra e, puritano, se arremessou
contra o Marabá, não se incomodando com os fantasmas que ali bebiam seu último
trago.
Após o dilúvio, Noé pediu a palavra e falou com a
multissecular experiência: “Despertai, oh, homens de pouca fé. Mudai essa
mentalidade de urubu, que só pensa em fazer casa quando chove, passada a
tormenta diverte-se sob o sol. A cidade precisa preparar-se para futura
enchente. Faz-se necessária a criação de um organismo, constituído de técnicos
e amigos da cidade, dispondo de planos previamente traçados e material
suficiente para enfrentar com certa mobilidade qualquer calamidade pública. Um
organismo que tenha, de antemão, pelo menos, condições de abrigar as populações
ribeirinhas, requisitar mantimentos e carros oficiais. Que tenha o COMANDO DA
CIDADE DURANTE A ENCHENTE. Que disponha de equipes de salvamento e de segurança
pública, afastando das ruas os bêbados e os “turistas” que utilizam até carros
oficiais. Que mantenha em ordem , tanto quanto possível, os serviços públicos
essenciais. É hora de pensar nisso. Quem avisa amigo é. O Prefeito pintou os
postes da Cinquentenário, talvez, antecipando as alturas das águas. Deixai que
os políticos se digladiem, a vós, amigos da cidade, cabe a tarefa
restauradora”.
Assim falou Noé, quando o rio deixou um mar de lama na
cidade. Parecia um sonho, talvez um pesadelo.
(MENINO ALUADO)
Manoel Lins
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MANOEL LINS – Nasceu em Buerarema, Sul da Bahia a 4 de julho
de 1937.
Diplomado em advocacia pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal da Bahia. Em Salvador trabalhou em jornais. Em Itabuna
exerceu a advocacia e publicou algumas monografias relacionadas com a área
profissional. Como cronista compareceu frequentemente em quase toda a imprensa
da região cacaueira baiana. Uma seleção dessas crônicas foi publicada em
“Menino Aluado”, 1968. Participando do espetáculo da vida na cidade pequena,
assistindo, confrontando, depondo, suas crônicas são retalhos primorosos do
cotidiano sem esconder certa dose de sentimento de mundo. Não fosse a morte
prematura, encontraria seu lugar merecido na crônica brasileira.
Faleceu, vítima de acidente automobilístico, em 1975.
Da coletânea ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES organizada por
Cyro de Mattos
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