29 de janeiro de 2017
Transcorria o ano de 1556. Dom Pero Fernandes Sardinha — nosso
primeiro bispo — tomava a nau Nossa Senhora da Ajuda, acompanhado de
eclesiásticos, pessoas da sociedade e famílias inteiras rumo a Portugal.
Um acidente fatal a fez soçobrar pouco depois de zarpar de
Salvador. Os que escaparam ao naufrágio — e foram muitos — acabaram capturados
e devorados pelos ferozes índios caetés, na margem esquerda do rio São Miguel,
ainda hoje indicada graças à crença popular.
Eis um acontecimento característico do estado dos índios
brasileiros por ocasião da chegada dos nossos primeiros colonizadores e
missionários.
Para darmos uma ideia da mudança ocasionada pelo influxo do
Cristianismo e da civilização, apresentaremos, neste primeiro artigo de uma
série de três, um quadro geral da situação em que se encontravam os aborígines
na época do descobrimento do Brasil.
Nomadismo e promiscuidade
Talvez a maior descoberta dos portugueses ao desembarcarem
em nossas terras tenha sido os próprios índios, um tipo humano ainda não
conhecido pelos lusos em nenhuma parte do mundo. A única ciência dos indígenas
era a floresta. O objetivo de suas vidas era comer, beber, caçar, combater e
matar…
As aldeias que construíram — as tabas duravam no máximo
quatro anos: as madeiras apodreciam, as palmas dos tetos de suas ocas já não os
cobriam e toda a caça da redondeza estava exterminada.
Se alguma tribo se dedicava precariamente à agricultura, as
terras cultiváveis estavam cansadas, o que obrigava os silvícolas a se mudarem
de local. Além de predadores da natureza, nossos índios, com seus costumes
nômades, jamais conheceram qualquer tipo de desenvolvimento.
Os laços sociais que os uniam eram de tal maneira frouxos
que essas pequenas tribos se fracionavam cada dia mais. As constantes guerras
de extermínio entre elas constituíam motivo para que se debilitassem e
diminuíssem em número.
Nessas pobres almas predominava o instinto de vingança.
Iniciadas as rixas que eram transmitidas de pais para filhos, não se poderia
esperar nenhum sentimento de abnegação em favor do interesse comum e tampouco
da posteridade.
Ao contrário de certas visões idílicas que alguns autores
indigenistas procuram dar à vida tribal, ela se caracteriza pela mais completa
promiscuidade, causadora de todas as espécies de doenças e vícios morais.
Vários cronistas da época relatam que os índios, antes da
conversão, moravam em casas compridas — as ocas — cuja superfície era de
trezentos ou quatrocentos palmos por cinquenta de largura; suas paredes eram de
palha e o teto recoberto de folhas de palmeiras. Dentro delas viviam
esparramados indistintamente cerca de cem a duzentos silvícolas. Entrando na
oca, via-se a todos e tudo quanto nela se encontrava. Uns cantavam, outros
riam, outros choravam, alguns preparavam farinha, outros o cauim etc. Havia
pequenos fogos por todos os lados dando uma aparência de labirinto ou de um
pequeno inferno.
Essas tabas eram escura, malcheirosas e esfumaçadas. À guisa
de camas, os infelizes nativos usavam uma espécie de rede que exalava um odor
horripilante, pois eles eram tão preguiçosos que nem se levantavam para
satisfazer suas necessidades naturais.
Índios canibais
Eram seres humanos inteiramente rudimentares, ferozes,
astutos, mentirosos e traiçoeiros. E, além do mais, eram canibais.
As cerimônias de matanças públicas serviam de pretexto para
festas e ajuntamentos. Daí a denominação de “antropofagia ritual” que lhes
deram. Os aborígines comiam seus inimigos por vingança. Suas expedições
guerreiras tinham também como fim proverem-se de carne humana.
Durante os combates, os índios visavam sobretudo à captura
de prisioneiros. Após uma luta preliminar, os guerreiros de ambos os lados
precipitavam-se uns contra os outros, esforçando-se para desarmar o adversário
e aprisioná-lo vivo. Os mortos e feridos no campo de batalha eram dizimados e
devorados imediatamente, levando-se também diversas partes assadas para casa. A
expedição vitoriosa fazia uma entrada triunfal em todas as tabas aliadas, ao
longo do caminho. Ao chegar à aldeia de origem, as tropas obrigavam o
prisioneiro a gritar: eu, vossa comida, cheguei!
Nenhum deles podia escapar ao sacrifício ritual para o qual
era destinado. Caso adoecesse, os indígenas levavam-no mata adentro e
partiam-lhe o crânio, deixando o cadáver insepulto. A duração do cativeiro
variava muito, pois os velhos eram mortos sempre no retomo da expedição,
enquanto os jovens poderiam manter-se cativos por vários meses, até anos.
Marcada a data da execução, todos os vizinhos e aliados eram
convidados a tomar parte no festim. Passavam a noite precedente, num simulacro
de vigília, a dançar, cantar e beber. Logo ao alvorecer, várias mulheres
conduziam a vítima amarrada pela cintura até a praça da execução, no centro da
aldeia, em meio a grande alvoroço. Aparecia então, no pátio, o carrasco
dançando com um enorme tacape nas mãos, e, aproximando-se do prisioneiro, o
brandia com toda força, quebrando-lhe a cabeça.
Mal o mísero massacrado caísse morto, velhas índias
precipitavam-se sobre ele para recolher em uma cuia o sangue e os miolos que
eram engolidos ainda quentes. Em seguida, o cadáver era assado como se fosse um
porco e depois esquartejado, levando-se então os pedaços às cabanas em meio a
gritos de alegria. Os selvagens acreditavam que, comendo a carne do inimigo,
apropriavam-se de suas qualidades e manifestavam sua superioridade sobre ele.
Antropofagia doméstica
Algumas tribos comiam por culto membros de sua família que
faleciam, dando-lhes, como pensavam, um digno sepultamento em seus próprios
estômagos.
Nas tribos que praticavam a antropofagia era freqüente
encontrar esse canibalismo doméstico, mágico ou participativo. Ele procede da
crença de que, pela ingestão das carnes de um indivíduo, dá-se a mais íntima
união possível com ele, e por conseguinte, a participação em suas qualidades:
coragem, vigor, destreza etc. Daí os banquetes sagrados em que eram comidos, em
festividades solenes, os personagens tidos como superiores: o cacique, o pajé,
os guerreiros ou heróis, freqüentemente pessoas da própria tribo.
Assim, a fim de se revestirem das qualidades desejadas de
seus antepassados, surgiu em várias tribos o costume de ingerir-lhes, em
rituais fúnebres, as cinzas com bebidas especiais.
Um mês após o funeral do familiar, desenterravam seu
cadáver, já em adiantadíssimo estado de putrefação, e o colocavam em uma grande
panela sobre o fogo, até que lhe extinguissem as partes moles. Os odores
fétidos exalados durante o ato completavam aquele ritual macabro. Quando os
ossos ficavam carbonizados, eram triturados e reduzidos a pó. Este, por sua
vez, era colocado em grandes cuias de madeira cheias de bebidas. Todo o grupo
presente bebia então esta mistura até a última gota, crendo que as virtudes do
morto haviam se transmitido a todas as pessoas que a ingeriam.
Taba ou aldeia indígena encontrada pelos primeiros
colonizadores e missionários (gravura de A.F. Lemaitre)
Fundação dos aldeamentos
Pero Vaz de Caminha lê para o comandante Pedro Álvares
Cabral, o Frei Henrique de Coimbra e o mestre João a carta que será enviada ao
rei D. Manuel I.
Foi esse o sinistro panorama encontrado pelos primeiros
missionários que para cá vieram, com a intenção de iniciar a catequese desses
silvícolas e implantar a civilização cristã em nossa pátria.
Segundo estimativas geralmente aceitas, na época do
Descobrimento, o Brasil contaria com cerca de cinco milhões de índios. O grande
mérito de Portugal foi transformar a catequese na base de sua obra
colonizadora. “Contudo, o melhor que dela se pode tirar parece-me que será
salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela
deve lançar”, escreveu Pero Vaz de Caminha a el-Rei de Portugal, Dom Manuel,
narrando a descoberta da Terra de Vera Cruz.
Os maiores entraves para sua conversão foram: a
antropofagia, a poligamia, as bebedeiras, o nomadismo intermitente, as guerras
entre tribos vizinhas e a inconstância nos propósitos.
Se os missionários se contentassem tão-só em percorrer as
aldeias dos nativos, além de todos os tipos de riscos que enfrentariam, o
resultado seria precário. O que eles ensinassem em um mês, por falta de exemplo
ou de exercício, perderiam no outro. Com o nomadismo intermitente dos índios,
ao voltarem os missionários a uma tribo que haviam catequizado pouco antes, em
vez dela encontrariam cinzas.
Era necessário o mais depressa possível fixar os indígenas
ao solo, afastando os já batizados da influência dos que permaneciam pagãos. De
outra maneira, não seriam extirpadas as indecisões nem a volta aos costumes
antigos.
A catequese dos índios seria uma quimera enquanto não se
organizassem os aldeamentos, com regime próprio e autoridade. As primeiras
tentativas de formação das aldeias indígenas ocorreram na Bahia. Elas foram a
modalidade mais eficaz e original de colonização aplicada no Brasil, primeira
semente das célebres reduções jesuítas.
Mem de Sá, o terceiro Governo-Geral, concedeu todo o apoio
aos primeiros missionários jesuítas e favoreceu a fundação de aldeamento dos
silvícolas.
Para ser eficaz e completa, a atividade dos missionários
precisava ser apoiada pelas autoridades públicas. O terceiro Governador Geral
do Brasil, Mem de Sá (1558–1572), concedeu todo apoio moral e material aos
primeiros missionários jesuítas, comandados pelo padre Manoel da Nóbrega.
Sob a influência da milícia de Santo Inácio, os
Governadores-Gerais deram a tais aldeamentos regalias quase municipais. Com
efeito, tinham eles uma legislação especial que regulamentava os bens dos
índios, sua separação em relação aos portugueses, o comércio entre eles e o
regime de trabalho, baseado nas instituições portuguesas.
Começou desse modo a grande obra de catequese junto aos
silvícolas brasileiros, cujo desenrolar trataremos no próximo artigo.
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Bibliografia:
1. Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no
Brasil, Livraria Portugalia, Lisboa, 1938.
2. Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil,
Edições Melhoramentos, São Paulo, 1959.
3. Alfred Metraux, A religião dos tupinambás, Cia.
Editora Nacional, São Paulo, 1979.
4. Allcionilio Bruzzi Alves da Silva, A Civilização Indígena
do Uaupés, Libreria Ateneo Salesiano, Roma, 1977.
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