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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

POR AMOR – Antônio Carlos Hygino

Por amor

Recordo-me bem das alvoradas e, com mais nitidez, do por do sol no velho cais banhado pelas águas do Rio Buranhém,  que se mesclavam com as vindas do oceano, separados, o rio e o mar, por um colossal recife em barreira esculpido pela natureza, a desenhar uma das mais belas paisagens por ela criadas. Vejo-me na Ponta de Areia, local próximo ao cais. Na beira da praia, havia a tarifa – ponto de comércio de mariscos -. Ao lado, uma amendoeira antiga cercada por espécie de banco de madeira, meio desforme e rústico, onde as pessoas se reuniam para conversar, jogar dominó, tomar um trago e também confidenciar juras de amor. Próximo dali, na Praia do Cruzeiro, misturam-se pitangueiras, mangabeiras, cajueiros e, na areia branca, os pés de gurus se espalhavam entrelaçados e ofertavam frutos roxeados de sabor inesquecível, sem igual.

A eles se misturavam os pés de cocos de caxandó. Eu era menino e, juntamente com meus amigos, desfrutava daquilo tudo. Adorava ir à tarifa com o meu avô comprar peixe. O preferido dele era Guaricema. Minha avó fazia uma moqueca de Guaricema frita, servida com mangabas, que até hoje guardo na lembrança. Numa dessas idas e vindas à tarifa, ou- vir um marujo, em tom zombador, de deboche, contar ao meu avô o que houvera se passado com “Beijinho”, um pescador, homem do mar. Assim o chamavam porque era de baixa estatura. Seu nome era Benjamim.

Sujeito forte, valente, destemido. Beijinho era pai de Maciel e de Otávio, frutos do seu  casamento com Ana, conhecida por Donana, a mulher de sua vida. Havia duas coisas que realmente amava Ana e o mar. Eram pescadores, mestres na arte de navegar. Não tinham estudo, mas experiência não lhes faltava. Tinham um saveiro batizado de “Marujo”. Da embarcação tiravam o sustento.

O casamento de mais de 40 anos findara com a morte de Donana. A dor da perda da mulher amada,  modificou-lhe complemente a vida. Beijinho não mais saia de casa. Fez-se triste. Nada mais fazia sentido. Desde o passamento, há um ano, a solidão e a tristeza passaram a lhe fazer companhia.

Certo dia, seus filhos convenceram-no a visitar “Marujo”. Estava o saveiro completamente reformado. Convencido pelos filhos resolveu, então, voltar ao mar. O barco foi guarnecido do necessário à finalidade. No dia seguinte, bem cedinho, deixaram o cais. O veleiro rompeu a barra e rasgou o mar. A previsão de retorno era no final da tarde. A depender da pescaria, dormiriam no mar e voltariam no dia seguinte. A pesca era artesanal. 
Não havia instrumentos de navegação, salvo a bússola. Falava mais alto a experiência, até mesmo na localização dos chamados pesqueiros em alto mar.

Naquele dia tudo estava correndo muito bem. Haviam localizado um pesqueiro e farta era a pesca. Animados, resolveram pernoitar. Caía a tarde. As estrelas, ainda meio tímidas, começam a piscar no firmamento. De repente, o tempo se transformou. O vento sul soprava impiedosamente, cujas rajadas violentas despertaram a ira de Netuno, deixando o mar revolto. A natureza chorava em forma de tormenta e seus gritos se revelavam no estrondo estarrecedor dos trovões. Por vezes cuspia labaredas de fogo a iluminar, por breves segundos, o breu da noite.

Em meio a esse cenário, o saveiro desgovernado bailava, ora para a esquerda, ora para a direita, ora para cima, ora para baixo, sem saber ao certo para onde ir. Dentro dele, os homens desesperados, rogavam a Deus a salvação. A chuva apagou as duas lamparinas que se encontram do lado de fora do convés. Tudo ficou turvo. Tateando em busca de uma delas, Beijinho desequilibrou-se e caiu ao mar. Desesperado, mestre Otávio lançou-se ao mar em fúria para socorrer seu velho pai. Seu guia era a intuição. Do saveiro, com uma lanterna, Maciel norteava a Otávio. Os gritos aflitos deram a Otávio a localização de Beijinho. Agarrado ao pai tentava bravamente levá-lo a bordo, mas não conseguia devido não só às circunstâncias, mas à resistência dele em querer morrer no mar. Sem alternativa, deferiu-lhe um soco, vindo ele a desmaiar. Maciel arremessou- lhe uma boia amarrada numa corda. Agarrou-se à boia e puxado por Maciel, finalmente veio a bordo trazendo consigo o pai. Exausto, no convés, agarrado ao seu pai, viu a noite lentamente passar.

O dia amanheceu. O tempo havia melhorado. Beijinho acordou. Ainda assustado, o mestre Otávio lhe pergunta: “meu pai, por que o senhor dizia aos gritos que queria morrer”? Ao que ele respondeu: “porque não cumpri a jura que fiz a Ana, a mulher que sempre amei e amo, de partir antes dela para esperá-la no céu, na casa de Deus e, num cantinho, revivermos o nosso grande amor”. Em silêncio, atentamente, meu avô a tudo ouviu. Apaixonado por minha avó, não fez qualquer comentário. Pensei comigo como podia àquele homem desdenhar do amor? Afinal, quem nunca quis morrer por amor?

E tenho, até hoje, que só desdenha do amor quem não conhece o amor.

Amar é preciso.

Viver não é preciso.


Sobre o autor:
Antônio Carlos de Souza Hygino
Juiz de Direito titular da 5ª Vara Cível da Comarca de Itabuna – Bahia.



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