29 de dezembro de 2016
“Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era
pacifista, libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e
os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as
últimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na
entrada de sua casa: ‘De onde quer que você venha, entre e seja bem-vindo.’ Quem,
segundo o senhor, respondeu a este belo convite? Os milicianos, que entraram
como se a casa fosse deles e o estriparam.” – Albert Camus, A Queda
Aproveitando a época mais calma do ano em termos de
trabalho, em clima quase de férias para quem nunca tira férias, tenho dedicado
mais tempo às séries da Netflix, e com isso pude avançar bem na que estou vendo
no momento. Trata-se de “Black Mirror”, com episódios quase sempre marcantes,
impactantes, que apontam para o telespectador um espelho e mostram aquilo que
está lá, em nosso âmago, mas que tentamos esconder – dos outros e de nós
mesmos.
Depois de ver um político que precisa fazer sexo com um
porco ao vivo para salvar uma princesa sequestrada, sob o júbilo do povo
curioso (o mesmo que sempre frequentou linchamentos em praça pública), um
urso de desenho animado que ridiculariza todo o sistema e acaba quase
eleito, uma moça que acorda sem memória e é perseguida enquanto todos à sua
volta simplesmente tiram fotos, gente que “pedala” e vive confinada em
cubículos só sonhando com a fama, vi ontem um episódio que se chama justamente
“Queda livre”. Retrata uma espécie de Uber de pessoas, com cada um dando
notas aos outros, e sua nota é fundamental para tudo na vida.
Uma metáfora ao dinheiro e ao status que cada um tem, mas
potencializado pela tecnologia moderna. Essa é a temática da série, em resumo:
nossa natureza é isso, nada tão bonitinho como gostamos de crer, e as redes
sociais têm estimulado esse lado mais individualista e narcísico em nós. Tudo
por cliques, por “curtidas”, para ser “amado” por todos, numa tremenda prisão
cansativa em que o genuíno é sacrificado pelo artificial.
Tem sido o tema recorrente de textos e livros do filósofo
Luiz Felipe Pondé. Os jantares “inteligentinhos”, os filhos
adolescentes que só pensam em salvar crianças africanas e bichinhos, os
locais que precisam ser visitados nas viagens de férias porque todos
visitam, a ausência de qualquer preconceito etc. A vida transformada num
desgastante espetáculo para os outros, sob uma ditadura do politicamente
correto em que você precisa aparentar ser a alma mais abnegada e
descolada do planeta. Ainda que seja preciso sorrir e falar belas palavras para
a “amiga” da escola que transou com seu namorado.
Como deve ser cansativo viver o tempo todo pelas aparências!
Como a personagem de Jodie Foster em “Deus da Carnificina”, de Polanski.
Escrevi sobre isso em Esquerda Caviar:
O filme Deus da carnificina, de Roman Polanski, é uma
sátira à hipocrisia do politicamente correto, com Judie Foster fazendo o papel
de uma típica representante da esquerda caviar, que se coloca sempre acima dos
outros no campo moral.
Ela é capaz de tudo perdoar em nome da “civilização”. É tão
descolada que até passou sua lua de mel na Índia! Mas, em certo momento,
desabafa: “Por que tudo tem que ser sempre tão exaustivo?”. Usar sempre aquela
máscara cansa.
A personagem abraça as causas das pobres crianças africanas,
mas, no fundo, esconde seu ódio a tudo aquilo em volta, seu recalque à sua vida
medíocre com seu marido acomodado, um simples vendedor de latrinas sem ambição.
Eis como Pondé resume a figura em um artigo sobre o filme:
Ela escreve livros sobre Darfur e a miséria na África e, em
meio a seus berros contidos de histérica, ela decreta que quem não se preocupa
com a pobreza mundial não tem caráter. Tenta passar a imagem de que ama e
perdoa a todos, inclusive o filho da Winslet que bateu em seu filho, mas no
fundo é uma passiva agressiva, aquele tipo de mulher descrita por Woody Allen,
que fala baixinho, mas fere fundo com sua saliva venenosa e cruel.
Em certo momento, o marido afirma que o “amor” que ela
sentia pelos negros do Sudão tinha estragado tudo nela. É uma tirada ácida, mas
que aponta para essa característica da esquerda caviar com perfeição. Ela
“amava” os pobres distantes, mas isso era pura hipocrisia, uma forma de
entorpecimento próprio. A esquerda caviar usa a “preocupação” com a desgraça
alheia como troféu de sua suposta superioridade moral. As minorias oprimidas
são seus mascotes.
Quem não quer – ou não sente a necessidade – de ligar o
“FODA-SE” de vez em quando, de deixar aquilo que realmente sente vir
à tona e falar mais alto? Claro, há o outro extremo que me parece igualmente
nefasto: o “sincericídio”, aquele que não tem filtro algum entre o que pensa e
o que sai de sua boca, o bruto incapaz de qualquer “mentirinha social” para
agradar ou para não ofender tanto os demais.
Aristoteles já dizia que o homem é um “animal político”, e
que somente um deus ou um bruto poderia abrir mão disso, da vida em
civilização. E viver em sociedade significa engolir alguns sapos, aceitar com
alguma maturidade o espetáculo da vida, o teatro, as máscaras que usamos em
público, ou mesmo em casa. Nem um casal suportaria a verdade o tempo todo.
Alguma hipocrisia se faz necessária para viver entre os seres humanos (qualquer
marido que precisa sempre responder se a roupa da esposa está bonita entende
isso). Como não existe deus entre nós, só mesmo um bruto, um bárbaro poderia
virar as costas totalmente ao “sistema” e cuspir em todas essas convenções
sociais meio falsas.
Um bruto ou, claro, um ser completamente imaturo, e também
movido por vaidade, ainda que diga o contrário. Ou seja, um sociopata ou alguém
infantil. Penso em Stockmann, na peça Um Inimigo do Povo, escrita pelo
norueguês Henrik Ibsen no século XIX. Após descobrir que os famosos banhos da
cidade estavam contaminados, esperava obter grande respeito e admiração por
parte dos demais habitantes. Afinal, sua descoberta mostrava os riscos para a
saúde de todos. Mas Stockmann ignorara os fatores políticos e econômicos, já
que os banhos eram a principal fonte de renda da cidade.
Aos poucos, mesmo seus supostos aliados, que declaravam
apoio pela frente, o atacaram pelas costas, se voltando contra ele. Toda a
cidade passou a repudiar o autor da infeliz descoberta, preferindo ignorar os
fatos, como se assim estes pudessem, num passe de mágica, desaparecer. Dr. Stockmann
agiu diferente, e mesmo que sozinho, sem apoio, escolheu a verdade pura, e
enfrentou a maioria. Acabou tachado como um inimigo do povo, na tentativa de
ajudá-lo.
Seria ele um homem com a coragem moral de manter sua
integridade e convicção apesar da enorme pressão popular contra sua pessoa, ou
alguém com postura infantil e sem qualquer jogo de cintura, no fundo agindo
assim para superar a estima que seu irmão político tinha perante a população?
Parece claro que a inocência de Stockmann beira o absurdo, e que sua convicção
confunde-se com fanatismo até, ao se mostrar disposto a ignorar totalmente a
pólis e até a destruí-la em nome da verdade irrestrita.
Temos ainda Cordélia em Rei Lear, de Shakespeare. A filha
mais jovem do rei, e também a favorita, recusa-se a tecer elogios artificiais
em evento público em que cada filha recebe sua herança em forma de propriedade.
Ela acha que não é correto usar palavras vazias para expressar seus
sentimentos, e não é capaz de abusar da retórica como suas irmãs mais velhas,
que possuem o dom da palavra, ainda que falsas no conteúdo. Ela seria mais
genuína ou apenas mais infantil, ao não superar esse obstáculo em nome do jogo
político em curso? Shakespeare, ao desenrolar a história como uma grande
tragédia após este ato de recusa de Cordélia, parece acreditar na segunda
hipótese.
Não ser capaz de nenhum ato de elogio artificial pode ser
não um sintoma de integridade, mas de infantilidade ou barbarismo. Dito isso,
claro que nossa realidade parece inclinada ao outro extremo, a essa obsessão
com as “notas” que vamos receber dos outros, até de desconhecidos. E, como
alertava Baltasar Gracián, “Para ser benquisto, o único meio é vestir-se com a
pele do mais simples dos animais”. Schopenhauer ia em linha semelhante ao
afirmar que “quem tem de produzir o bom e o autêntico e evitar o ruim tem de
desafiar o juízo das massas e de seus porta-vozes e, portanto, desprezá-los”.
Não acho que seja saudável ou possível “desprezar”
totalmente o juízo dos outros, o julgamento que fazem a nosso respeito. Somos
“animais cívicos” e a opinião dos outros deve ser levada em conta. Mas com
certo equilíbrio. O excesso de preocupação com o que os outros pensam de nós
pode levar a uma prisão insuportável, a um comportamento completamente
artificial, sempre em busca de “curtidas”, de uma “nota” boa perante a
sociedade. Quem vive para isso não vive mais de verdade, não vive para si, não
passa de um zumbi, de um robô.
Quais são seus reais interesses? Quais são suas paixões
genuínas? Você quer tanto mesmo aquele carro novo ou é só para mostrar aos
outros? Você está mesmo desfrutando desse prato elaborado nesse caro
restaurante ou só pensando na foto que vai tirar para impressionar os demais?
Quer mesmo ir àquele lugar ou é só porque é o que se espera de quem tem certo
nível social passar as férias lá, no lugar da moda? Você está mesmo feliz o
tempo todo ou essas fotos incessantes de sorrisos em lugares bonitos com boa companhia
são só para parecer feliz, para inglês ver?
“Nem uma criança de dois anos que acaba de ganhar um balão
parece tão feliz”, espeta o irmão da personagem principal do episódio da série,
que se esforça com esmero em ser “querida” por todos. Atenção, SPOILER: Até ela
surtar. Acho importante buscar um equilíbrio entre as inofensivas “mentiras
sociais” e a sinceridade, sendo que essas mentiras são mais toleráveis quando
ditas para não ofender gratuitamente os outros, e não para ganhar pontos para
nós mesmos. Alguma pitada de artificialidade será necessária para se viver em
sociedade. Mas como valorizo mais o genuíno!
Sempre me cansou muito essa tentativa de parecer ser “cool”,
estar na “moda”, sorrir o tempo todo um sorriso falso para seduzir os demais,
bajular todo mundo, adular os famosos, ricos e poderosos, agir feito um
político em campanha 24 horas por dia. Essa é minha visão do inferno! E esse
meu inferno está se tornando realidade para a sociedade, com a mãozinha que as
redes sociais têm dado à nossa natureza humana vaidosa, insegura, desamparada.
Onde isso vai acabar? A distopia retratada em “Black Mirror” dá uma ideia. E
ela é assustadora!
Espero que consigamos reverter esse quadro. Mais
genuinidade, com boas doses de maturidade: eis o que desejo a todos em 2017.
Feliz Ano Novo!
Rodrigo Constantino
SOBRE / RODRIGO CONSTANTINO
Economista pela PUC com MBA de Finanças pelo IBMEC,
trabalhou por vários anos no mercado financeiro. É autor de vários livros,
entre eles o best-seller “Esquerda Caviar” e a coletânea “Contra a maré
vermelha”. Contribuiu para veículos como Veja.com, jornal O Globo e Gazeta do
Povo. Preside o Conselho Deliberativo do Instituto Liberal.
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