Aquilo que impede de amar
Antes de culpar o outro, que tal olhar para as histórias
soterradas que nos impedem de criar laços profundos?
IVAN MARTINS
12/10/2016
Na minha casa há duas gatas, duas samambaias e um cacto que
dependem de mim. É com uma ponta de orgulho, portanto, que eu afago as gatas
bem cuidadas e observo as folhas das samambaias crescerem de maneira uniforme.
O bem-estar dessa pequena comunidade de bichos e plantas testemunha a minha
capacidade de cuidar.
Lembro de um filme – 28 dias, com Sandra Bullock – em
que o interno de uma clínica para recuperação de drogados pergunta ao psicólogo
quando poderá voltar a namorar. Ele responde de forma direta: “Só depois que
você tiver uma planta e um bicho, e os dois sobreviverem”. Se for assim, trocando
as drogas pelo luto amoroso, passei no teste faz tempo, e estou pronto para um
novo relacionamento. Mas, obviamente, não é tão simples.
A gente passa a vida aprendendo as coisas realmente
importantes. Amar é uma delas. Quanto mais velhos, quanto mais se acumula
experiências, mais claras se tornam as nossas dificuldades. É incerto se
seremos capazes de superá-las, mas os intervalos entre relacionamentos são
momentos privilegiados de reflexão e aprendizado sobre os nossos limites.
Durante o luto que sucede uma relação duradoura, fazemos mais do que apenas
cuidar de bichos e plantas.
Também aprendemos sobre aquilo que nos impede de
expressar e aprofundar os sentimentos.
Falo, naturalmente, de gente que olha para si mesma de forma
crítica. Muitos não fazem isso. Para estes, os malogros se devem apenas às
atitudes ou à personalidade do outro. Sempre. Os relacionamentos acabam porque
a outra parte se revela chata, insegura, desonesta ou qualquer outra coisa
intolerável. Ou então ela faz algo que põe fim à relação: engana, deixa de
amar, vai embora, deprime, engorda, brocha. A culpa pela ruptura é do outro.
Sempre.
Mas a gente sabe que isso é besteira. Nós temos
responsabilidade em todo fiasco amoroso que compartilhamos. Até porque eles
costumam ser parecidos.
Mesmo tipo de pessoa, mesma espécie de dilema, o
conhecido final anunciado. Mas a culpa – estranhamente – continua sendo apenas
do outro, quem quer que ele seja. É mais fácil pensar assim do que lidar com as
nossas sombras, eu acho. Dói olhar para as histórias soterradas que nos impedem
de criar laços e amar. Amar de verdade – eu digo – não apenas se apaixonar por
gente atraente ou ter prazer em relações divertidas.
Tenho pensado muito na dificuldade de amar. No quanto é
difícil se conectar profundamente com o outro.
Profundamente quer dizer para
além do nosso egoísmo.
Quando a relação pede algo maior, quando ela exige
mudança, quando nos coloca diante de alguma espécie de tudo ou nada, nosso medo
aflora. Então descobrimos que nosso amor é incapaz de saltar no escuro e se
comprometer.
Ele hesita e recua, busca justificativas para se afastar ou
simplesmente se deixa morrer, por descaso. Quando acaba, dizemos a nós mesmos
que não era amor. Se fosse, saberíamos. Se fosse, nos atreveríamos. Será mesmo?
Pode ser também que sejamos covardes e que amar de verdade, com simplicidade e
resignação, esteja além da nossa capacidade pessoal.
Li outro dia, num romance maravilhoso e difícil – A
tradutora, de Cristovão Tezza – uma frase que ficou martelando. A personagem dizia
sobre o seu amante, de quem cogita se separar: “Ele batalha pelo que ama”.
Desde então, tenho me perguntado se na vida real batalhamos pelo que amamos. Ou
se realmente amamos aquilo pelo que batalhamos. São perguntas simples que
deveriam ter respostas igualmente fáceis, mas às vezes não têm.
Por isso os intervalos entre as relações são importantes.
Enquanto a gente rega o cacto com parcimônia e limpa
cuidadosamente a caixinha das gatas, há tempo de sobra para refletir sobre o
que nos levou a estar sozinhos – e quão distante, ou quão próximos, estamos de
uma nova relação. As duas coisas se interligam, claro. Se você não repete a
vida no automático, vai tentar fazer com que o futuro seja diferente do
passado. Vai processar um sentimento antes de mergulhar no próximo, para evitar
repetir erros e ter chance de renovação. Mas isso tem um preço: o de estar de
alguma forma sozinho enquanto o aplicativo da consciência vasculha os
sentimentos e a memória.
O resultado da investigação pode demorar algum tempo, mas vale
a pena. Existe sempre a possibilidade de que a gente descubra algo importante
sobre nós mesmos e fique livre daquilo que nos impede de amar. Amar de verdade,
entende?
IVAN MARTINS
Colunista de ÉPOCA
Autor do livro Alguém especial, escreve em epoca.com.br
às quartas-feiras
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