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domingo, 15 de janeiro de 2017

AQUILO QUE IMPEDE DE AMAR – Ivan Martins

Aquilo que impede de amar


Antes de culpar o outro, que tal olhar para as histórias soterradas que nos impedem de criar laços profundos?

IVAN MARTINS
12/10/2016

Na minha casa há duas gatas, duas samambaias e um cacto que dependem de mim. É com uma ponta de orgulho, portanto, que eu afago as gatas bem cuidadas e observo as folhas das samambaias crescerem de maneira uniforme. O bem-estar dessa pequena comunidade de bichos e plantas testemunha a minha capacidade de cuidar.

Lembro de um filme – 28 dias, com Sandra Bullock – em que o interno de uma clínica para recuperação de drogados pergunta ao psicólogo quando poderá voltar a namorar. Ele responde de forma direta: “Só depois que você tiver uma planta e um bicho, e os dois sobreviverem”. Se for assim, trocando as drogas pelo luto amoroso, passei no teste faz tempo, e estou pronto para um novo relacionamento. Mas, obviamente, não é tão simples.

A gente passa a vida aprendendo as coisas realmente importantes. Amar é uma delas. Quanto mais velhos, quanto mais se acumula experiências, mais claras se tornam as nossas dificuldades. É incerto se seremos capazes de superá-las, mas os intervalos entre relacionamentos são momentos privilegiados de reflexão e aprendizado sobre os nossos limites. Durante o luto que sucede uma relação duradoura, fazemos mais do que apenas cuidar de bichos e plantas.
Também aprendemos sobre aquilo que nos impede de expressar e aprofundar os sentimentos.

Falo, naturalmente, de gente que olha para si mesma de forma crítica. Muitos não fazem isso. Para estes, os malogros se devem apenas às atitudes ou à personalidade do outro. Sempre. Os relacionamentos acabam porque a outra parte se revela chata, insegura, desonesta ou qualquer outra coisa intolerável. Ou então ela faz algo que põe fim à relação: engana, deixa de amar, vai embora, deprime, engorda, brocha. A culpa pela ruptura é do outro. Sempre.

Mas a gente sabe que isso é besteira. Nós temos responsabilidade em todo fiasco amoroso que compartilhamos. Até porque eles costumam ser parecidos.
Mesmo tipo de pessoa, mesma espécie de dilema, o conhecido final anunciado. Mas a culpa – estranhamente – continua sendo apenas do outro, quem quer que ele seja. É mais fácil pensar assim do que lidar com as nossas sombras, eu acho. Dói olhar para as histórias soterradas que nos impedem de criar laços e amar. Amar de verdade – eu digo – não apenas se apaixonar por gente atraente ou ter prazer em relações divertidas.

Tenho pensado muito na dificuldade de amar. No quanto é difícil se conectar profundamente com o outro.
Profundamente quer dizer para além do nosso egoísmo.
Quando a relação pede algo maior, quando ela exige mudança, quando nos coloca diante de alguma espécie de tudo ou nada, nosso medo aflora. Então descobrimos que nosso amor é incapaz de saltar no escuro e se comprometer.
Ele hesita e recua, busca justificativas para se afastar ou simplesmente se deixa morrer, por descaso. Quando acaba, dizemos a nós mesmos que não era amor. Se fosse, saberíamos. Se fosse, nos atreveríamos. Será mesmo? Pode ser também que sejamos covardes e que amar de verdade, com simplicidade e resignação, esteja além da nossa capacidade pessoal.

Li outro dia, num romance maravilhoso e difícil – A tradutora, de Cristovão Tezza – uma frase que ficou martelando. A personagem dizia sobre o seu amante, de quem cogita se separar: “Ele batalha pelo que ama”. Desde então, tenho me perguntado se na vida real batalhamos pelo que amamos. Ou se realmente amamos aquilo pelo que batalhamos. São perguntas simples que deveriam ter respostas igualmente fáceis, mas às vezes não têm.

Por isso os intervalos entre as relações são importantes.
Enquanto a gente rega o cacto com parcimônia e limpa cuidadosamente a caixinha das gatas, há tempo de sobra para refletir sobre o que nos levou a estar sozinhos – e quão distante, ou quão próximos, estamos de uma nova relação. As duas coisas se interligam, claro. Se você não repete a vida no automático, vai tentar fazer com que o futuro seja diferente do passado. Vai processar um sentimento antes de mergulhar no próximo, para evitar repetir erros e ter chance de renovação. Mas isso tem um preço: o de estar de alguma forma sozinho enquanto o aplicativo da consciência vasculha os sentimentos e a memória.

O resultado da investigação pode demorar algum tempo, mas vale a pena. Existe sempre a possibilidade de que a gente descubra algo importante sobre nós mesmos e fique livre daquilo que nos impede de amar. Amar de verdade, entende?



IVAN MARTINS
Colunista de ÉPOCA 
Autor do livro Alguém especial, escreve em epoca.com.br às quartas-feiras

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