A
palavra não é amor, é dengo
O português, a língua imposta pelo colonizador, mesmo depois
de séculos de uso, é encaixe imperfeito no nosso ori, no mutuê. É palavra presa
na língua. É a língua represa nas palavras que nos desencaixam como ser no
mundo. Roupa que vestimos e não cabe confortável no nosso corpo. Falo
especificamente da norma padrão, a musa esquálida e pálida, a torre de marfim
que é campo de concentração linguístico para torturar e dissolver
gramaticalmente o nosso corpo-língua ancestral.
Observo que os nossos afetos, sentimentos transpostos
através das palavras, terminologias, nomenclaturas organizadas historicamente
pela hegemonia branca para nos dominar – a língua como um ferro quente na boca
– demarca o lastro terrível da escravização e racismo, não pode servir como
elemento simbólico, signos, para representar as formas de afeto que ocorrem
entre negros e negras.
Penso que a palavra amor tão consagrada pela cultura
ocidental desde a “Antiguidade Clássica” não tão clássica e antiga quanto às
clássicas civilizações melanodérmicas e ancestrais, berço de tudo, seja uma
dessas. A palavra amor para nós negrxs é espelho de reflexo falso, não cabe a
nossa imagem nela, que é profusão humana e beleza que extrapola a sua lógica.
A palavra amor se articula no mundo branco como pré-ódio,
exemplo: primeiro invadem outras nações, cometem as mais atrozes barbáries,
depois contemporizam com seus tratados filosóficos, religiões, mitos,
literaturas que azorragam a ideia de amor, a flor maior dos sentimentos humanos
segundo eles, para construírem uma sanção positiva das suas humanidades
derreadas e exercerem tranquilamente o poder sobre os outros povos. A palavra
amor assim é um embuste de algo sublime que funciona para eles, pois possui uma
função objetiva: criar conforto diante das suas quimeras mais profundas.
Para nós, negros, ela não funciona, é espelho falso e
reflexo bifurcado tragicamente, é desencaixe cognitivo e afetivo, sofisma que
nos adoece, ilusão fantasmagórica que não alcançamos e não comunga com a
extensão abissal de nossos sentimentos, pois desde o início estamos além. É um
signo que não comporta a densidade e beleza significativa da nossa afetividade,
do nosso sentir. É o desencaixo no coração, okan, e na cabeça, ori.
A palavra que dá conta de acoplar a nossa afetividade, no
caso do Brasil, de abarcar a batida mandingueira do nosso coração, da magia e
poesia do encontro ancestral de negros e negras, é a palavra de origem banto da
língua Quicongo, totalmente inserida na variação do português falado
principalmente por negrxs chamada de dengo. Óbvio que falo aqui do dengo
em seu sentido mais profundo e ancestral, o supremo dengo. Não da significação
subscrita nos dicionários brancos, que apequena os sentidos das palavras de
origem africana.
O dengo durante toda a história de escravização, favelização
e racismo nessa diáspora de angústia, o Brasil, foi o instante eterno de
libertação expressado num simples aconchego de esperança no desconforto
cotidiano. A união dos corações em sublimação ancestral, o oriki que arrepia os
pelos, pois ecoa por todo o corpo o axé e o poder dos orixás. Os olhos que se
entrecruzam e se fixam, pois há de haver o beijo, supremo dengo, libelo de
libertação expresso no gesto. Os corações que se entrelaçam para fazerem o
“corre” do quilombo intimo e movimentar os outros mocambos para construir o
grande quilombo. A humanidade que se reconstrói depois de se diluir através do
racismo das grandes metrópoles em frenesi no sorriso da companheira(o) no
encontro sagrado depois da batalha enfrentada. O reencontro dos continentes
afastados através de um juntar manhoso de faces azeviches a formarem destinos.
A palavra dengo é signo portentoso e conjuga em seu interior
a palavra chamego, é a família preta em celebração do quilombo íntimo, é a
África na origem, o sopro da criação original no ouvido a trazer placidez e
beleza ao coração.
Davi Nunes,
soteropolitano de nascença, graduado em Letras pela Universidade do Estado da
Bahia, é poeta, contista, e escritor de livro infantil. Em 2015 teve o livro
Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula publicado pela Editora
Uirapuru, além de ter o conto chamado “Cinzas” adaptado para o cinema.
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