No caso Renan, Cármen Lúcia foi mais ‘articuladora política’
que magistrada
Josias de Souza
08/12/2016
Quem dispõe de poder e o exerce de forma arbitrária, erra o
alvo. Quem abre mão de exercer o poder de que dispõe vira o alvo. Nas 48 horas
que antecederam o julgamento da ação envolvendo Renan Calheiros, a ministra
Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, atuou mais como
articuladora política do que como magistrada. Com isso, contribuiu para
solidificar a ideia de que a democracia moderna no Brasil é constituída por
três poderes: o Executivo, o Judiciário e, acima de ambos, Renan Calheiros.
O blog ouviu duas das pessoas com assento no
plenário do Senado que conversaram com Cármen Lúcia. Uma procurou a ministra.
Outra foi procurada por ela. Ambas traçaram um cenário apocalíptico. Era como
se a liminar do ministro Marco Aurélio Mello ordenando o afastamento de Renan
do comando do Senado tivesse eliminado o chão da República.
Diante da novidade,
os políticos comportavam-se como se vivessem uma cena de desenho animado.
Nos desenhos animados, quando acaba o chão, os personagens
continuam caminhando no vazio. Só caem quando percebem que estão pisando o
nada. Se não se dessem conta, atravessariam o abismo. Os interlocutores de
Cármen Lúcia defenderam, em essência, a tese segundo a qual o plenário do
Supremo deveria eliminar o abismo aberto por Marco Aurélio com rapidez, antes
que a República olhasse para baixo.
“Me ajude a pacificar essa Casa”, rogou Cármen Lúcia em
telefonema a uma das pessoas às quais recorreu no Senado. “Se tirar o Renan
daquela cadeira, o governo do Michel Temer acaba”, disse a voz do outro lado da
linha, segundo relato feito ao blog. “O vice do Renan é do PT, Jorge
Viana.
Ele não tem compromisso nenhum com a agenda econômica do governo. O PT
quer implodir os planos do governo.”
A tese de que Renan é um pilar da República tornou-se um
conto do vigário no qual Cármen Lúcia caiu. Convencida de que Renan é o outro
nome de governabilidade, a ministra entregou-se à abertura da trilha que
levaria à porta de incêndio. Reuniu-se com o vice de Renan, o petista Jorge
Viana. Franqueou os ouvidos às ponderações do presidente do PSDB, Aécio Neves.
Chamou colegas de tribunal ao seu gabinete. Tocou o telefone para outros.
Ao votar na sessão em que o Supremo brindou Renan com um
afastamento meia-sola —ficará proibido de substituir o presidente da República,
mas permanecerá no comando do Senado— Cármen Lúcia como que resumiu o
sentimento que a norteou: “Em benefício do Brasil e da Constituição da qual
somos guardiões, neste momento impõe-se de forma muito especial a prudência do
Direito e dos magistrados. Estamos tentando reiteradamente atuar no máximo de
respeito e observância dos pilares da República e da democracia.”
Quatro dos seis ministros que votaram a favor da fórmula que
levou Renan a soltar fogos na noite da véspera do julgamento mencionaram razões
políticas em seus votos. A manifestação de Luiz Fux beirou o escracho. Ele
disse que o Brasil vive uma “anomalia institucional”. Acrescentou que o
afastamento de Renan seria mais ruinoso que sua permanência. Sem ele, estaria
comprometida toda uma agenda nacional que exige deliberação imediata do
Congresso.
Ficaram boiando na atmosfera as palavras do relator Marco
Aurélio: “Hoje, pensa o leigo que o Senado da República é o senador Renan
Calheiros. […] Diz-se que, sem ele, tomado como um salvador da pátria amada,
não teremos a aprovação de medidas emergenciais visando combater o mal maior,
que é a crise econômico-financeira. […] Quanto poder! Faço justiça ao senador
Renan Calheiros. Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República.”
Na sua vez de falar, o procurador-geral da República Rodrigo
Janot também borrifou desalento no plenário. Como que antevendo o triunfo de
Renan, ele indagou: como compatibilizar a situação do senador “com o princípio da
moralidade”? Mais: “Como valorizar o primado das leis e do Estado de Direito
com um réu em ação penal à frente da chefia do Estado brasileiro.” Pior: “Que
mensagem e que exemplo que esse estado de coisas daria para as nossas crianças,
adolescentes, brasileiros do povo em geral?”
Quando a posteridade puder falar sem pudores
sobre strip-tease que o Supremo Tribunal Federal teve de fazer, sob
Cármen Lúcia, para dispensar a Renan Calheiros o tratamento que a moralidade e
a Constituição sonegaram a Eduardo Cunha, os livros de história irão realçar: a
pretexto de salvar o Brasil do Apocalipse que sobreviria ao afastamento de
Renan de uma poltrona que ele só vai ocupar por mais dez dias, o Supremo
Tribunal Federal expôs seus glúteos na frente das crianças.
* * *
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