Vítima de encantos
mil
Qualquer que seja o ganhador da eleição, a cidade corre o
risco de perder muito. Continuar a perder. Já vem perdendo desde que deixou de
ser a capital federal, há mais de meio século, e herdou vários ônus sem manter
os bônus. Talvez a carga mais pesada, entre tantas, seja uma bagunça
administrativa sem tamanho, num jogo de empurra entre órgãos que nunca podem
nem querem resolver os problemas, porque jamais se consegue estabelecer se as
dificuldades são da esfera municipal, estadual ou federal. Mas os efeitos da má
gestão recaem sobre os cariocas.
Abastecimento de água e saneamento talvez sejam o exemplo
mais óbvio desse jogo, mas não o único. Moradia popular, (in)segurança pública,
vexaminosa precariedade dos transportes, trânsito infernal configuram outra
constelação de exemplos, ligados entre si, interdependentes de instâncias
diferentes. Seguem a receita de complicar para não resolver, ainda que todo
mundo acene com promessas.
Estamos fartos e temos motivos. Ainda agora, quando a saída
do Beltrame assinala outra perda, a da esperança, e se esvai a perspectiva de
paz que as UPPs pareceram abrir, nos vemos patinando no mesmo ponto, sem sair
do lugar — enquanto não piorar.
A segurança pública está ligada a uma situação geral. Não
depende diretamente da prefeitura. Não pode ser discutida sem que se examine a
militarização da polícia. Inclui as armas e as drogas que vêm de fora. Precisa
levar em conta a falta de recursos, a diminuição dos royalties do petróleo, os
excessos e distorções da folha de pagamento, a falta de uma política nacional
no setor — que funcione e decida se considera a República como um todo ou se dá
real autonomia federativa aos estados. E, no caso de uma cidade como o Rio, é
indispensável que o poder público se faça presente muito além da mera ocupação
territorial — como o ex-secretário Beltrame cansou de enfatizar, desde o início
da implantação da primeira UPP. Precisa haver habitação decente, postos de
saúde, escolas, transporte eficiente, coleta de lixo regular, possibilidade de
que ambulância, bombeiro, correio e polícia cheguem a todo canto. Se a única
mudança é passar do nome de favela ao de comunidade, é só conversa.
Mas não dá para fazer essas intervenções urbanas se não for
possível garantir as desapropriações necessárias, coibir novas invasões,
enfrentar as ligações entre mandachuvas locais e autoridades em gabinetes. Para
não falar nos transportes, sempre apontados como braços do crime organizado,
pelas possibilidades que oferecem para lavagem de dinheiro.
A certeza da impunidade se manifesta em todas as áreas. Vai
além da corrupção e da desenvoltura crescente do crime organizado em todas as
suas ramificações. Recai sobre o meio ambiente, de modo espantoso. Com ódio ao
que a cidade tem de bom e atrapalha o ganho fácil.
“Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”, garante o hino.
Pois que se liquide com isso...
“Rio que mora no mar”, cantou a bossa nova. Então que se
acabe com o mar. Parece uma cruzada pela poluição das águas, na baía, nas
lagoas, nos aterros variados, eliminando ilhas, emporcalhando os rios que
descem em cascatas pela floresta e viram cloacas pelo caminho. A literatura nos
fala de dezenas de praias que não existem mais, há fotos de canoas na areia ao
pé da Igreja de Santa Luzia. Hoje se filmam despejos de esgoto in natura na
Enseada de Botafogo, no costão de São Conrado, no sistema lagunar da Barra da
Tijuca.
“Rio, serras de veludo”, continuava a canção. Pois então,
que se derrubem os morros, se eliminem as matas, se invada o que puder.
Chegando à estupidez de querer transformar o Jardim Botânico em área
habitacional, sob proteção de políticos. Uma cidade tão absurda que os cuidados
com árvores, jardins e parques ficam por conta da Comlurb, a do lixo.
“Sorrio pro meu Rio, que sorri de tudo...” Pois agora, na
polarização política que nos assola, as pessoas andam quase rosnando quando
mostram os dentes. É essa a tristeza maior. O Rio já vem perdendo tanto. Não
pode perder sua alma, o espírito carioca de acolher e zombar, se divertir com
irreverência, criando pontes de humor entre as diferenças.
Polo de atração, transformada em megalópole superpopulosa e
atulhada, o destino da cidade não pode ecoar a bela foto de Lalo de Almeida
esta semana na “Folha”: a copa gloriosa de um ipê-amarelo destacada no veludo
verde da floresta, atraindo os olhares como estrela brilhante a guiar na noite
escura. Indica o caminho aos madeireiros clandestinos. Basta sobrevoar, anotar as
coordenadas, proteger-se por baixo das copas das outras árvores e ir lá
derrubar. Nenhuma autoridade impedirá.
Como o Rio. Sucumbe, vítima da própria beleza. De seus
encantos mil, cobiçados por milhões.
O Globo, 29/10/2016
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Ana Maria Machado
- Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de 2003, na
sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003 pelo
acadêmico Tarcísio Padilha.
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