Uma mãe com mais de cem filhos
Cyro de Mattos
Os lenhadores começaram a derrubar as árvores de lei,
fazendo surgir o comércio do extrativismo, a mata, antes hostil e impenetrável,
ia recuando com a invasão daqueles homens de mãos calosas, natureza rústica, a
barba grossa por fazer. Barracões eram armados nos acampamentos dos
derrubadores de árvore, alguns formaram ajuntamentos de gente de vária
procedência e se transformaram com o tempo em vilas e, mais para frente, em
cidades pequenas.
Na parte que a mata era recuada, ficando a terra nua,
plantava-se então uma lavoura que
produzia um fruto cujas amêndoas valiam como ouro, por isso mesmo ao longo dos
anos viria forjar uma saga de cobiça e morte. O cacau foi como ficou conhecido
esse fruto, fez surgir com o tempo vilas e cidades, formando uma civilização
pujante, que se movimentava com os seus caracteres próprios.
Foi no tempo do apogeu da lavoura cacaueira que ela apareceu
na região. O que se dizia e causava pasmo era que aquela mulher baixinha era
mãe de mais de cem filhos. Como era isso possível? Minha avó Ana dizia que uma
mãe é para cem filhos e cem filhos não são para uma mãe. Minha mãe repetiu isso
para mim quando eu já estava ficando rapaz, a sombra do bigode no lábio
superior. Pensando hoje no que disseram minha vó e minha mãe, vejo que o amor é
o sentimento mais forte que temos, nada se compara ao de uma mãe, que é formado
com afeto, conselho, zelo e proteção. Ora, o que dizer então de uma mãe que
teve mais de cem e filhos e um número incalculável de netos? E quem seria mesmo
a criatura autora dessa proeza de dar à luz a uma prole tão numerosa?
Chamava-se Otaciana, muito cedo pôs os pés na estrada deste
mundo de Deus. Mas foi em Itabuna, cidade progressista na região de plantações
de cacau, no Sul da Bahia, que iria passar toda a sua vida. Vida bem vivida,
como gostava de dizer aquela criatura baixinha, enrugadinha, incansável, de
bons préstimos e muito estimada. Na cidade do Sul da Bahia, a professora
nascida em Arraial do Galeão, em
Sergipe, iria seguir uma vocação diferente, a de “pegar menino”, numa época em
que parto em maternidade não era constante.
A mulher de família abastada recorria ao médico do hospital
de Santa Casa de Misericórdia quando chegava a hora do parto ser realizado. Mas
a de origem humilde, na hora decisiva, se valia das mãos de Mãe Otaciana,
abençoadas por Nossa Senhora do Bom Parto, como o povo gostava de se referir
quando o assunto era pegar menino por aquela criatura com as maneiras de uma
pessoa santa.
De tão querida pelas gentes da cidade, quando se candidatava
ao cargo de vereadora, era eleita por votação expressiva, em geral ocupava o
primeiro lugar da lista dos vencedores afixada na parede da entrada da Câmara
de Vereadores. Não gostava de política, os amigos eram que insistiam e
terminavam por convencê-la para se candidatar como vereadora do Partido dos
Trabalhadores Brasileiros.
A cidade cometeu omissão imperdoável por não ter erguido em
uma de suas praças uma estátua como homenagem aos seus préstimos. No dia que se
comemorava a emancipação política da cidade, o padre Pedro, que foi do tempo em
que mãe Mãe Otaciana atuava como parteira, rezava na missa a oração dedicada
aos que estavam nos céus, os que foram virtuosos aqui na terra, doaram sua vida
dedicando-se ao bem do próximo. Mãe Otaciana era o primeiro nome a ser lembrado
na relação do sacerdote.
Por suas mãos, até certo ponto divinas, nasceram homens e
mulheres que construíram o progresso da cidade. Pelas mãos pacientes de uma
criatura que tinha olhos como duas contas azuis, passos miúdos, Deus anunciou o
milagre da vida. Mostrou a flor gerada
com ansiedade e, no desenlace feliz, sendo levada para o calor do seio.
Um dia, com aqueles olhinhos vivos, que pareciam sorridentes
quando ela falava, contou-me como ocorreu o primeiro parto que fez. Fora
chamada à noite, o tempo estava escuro e chuvoso. Bem moça, coração confiante,
chegava à casa da parturiente, que passava mal. Terminados aqueles minutos
sempre lentos, de apreensão para os de casa, escutou-se dentro da noite o choro
da criança. O pai limpou a turvação ardida nos olhos com a manga da camisa. Ela
observou: “Foi esse calanguinho aí que deu todo esse trabalho!” A partir
daquele parto, a professora que veio do sertão deixaria de ensinar, mãos
cuidadosas jamais deixariam de “pegar menino” enquanto ela vivesse.
Da última vez que encontrei Mãe Otaciana, saindo de sua
residência modesta, perguntei-lhe se começaria tudo de novo no seu ofício de
parteira. Ela, sem hesitar um minuto, irradiando candidez no rosto vívido,
alegria numa voz baixinha quase não se ouvindo, respondeu que sim. Era muito
apegada com Deus. Nunca teve problemas na arte de “pegar menino”. Sempre que um
parto era difícil recorria a um médico, que dava todo o apoio e ajuda,
acrescentava que essa mão amiga a fazia feliz. Encerrou a conversa com uma observação
que, em seu significado puro e verdadeiro, muita gente na cidade conhecia: “Na
vida trabalhei muito, meu filho”.
Forte, abnegada, sábia. Com aquele saber simples e profundo
recolhido das águas do tempo. Só consigo vê-la nesse instante como uma criatura
aparentemente frágil, mãos pequenas, cabeça alva, rumo à casa da parturiente.
Encurvadinha, acalentando luas, recolhendo a vida, que, enrolada nas lãs do
mistério, chegava dos longes para dar nesse beijo esperado o primeiro vagido.
Revejo-a com os olhinhos sorridentes, rosto lúcido, aparando
o susto esplêndido dentro da noite caprichosa. Noite túmida que, adormecida no
seio, ainda nem sonha.
Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
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