Um Pouco da Vida do Pai
Cyro de Mattos
A mãe contou
ao filho um pouco da vida do pai quando era rapaz. Nunca teve ajuda de ninguém
para sobreviver na dura lei da vida. Chegar ao que chegou como homem dono de um
patrimônio respeitável, sem nunca ter cursado uma escola, aprendendo a ler,
escrever e fazer conta com esforço próprio, era para aplaudi-lo sem economizar
as palmas. Fizera o patrimônio com esforço, muito trabalho e esperteza nos
negócios. Era por isso que pessoas na cidade não hesitavam em dizer que o pai
era um homem admirável, exemplo de vida que deveria ser seguido por outras
pessoas, que quisessem fazer fortuna.
O pai
trabalhou na roça de fazendeiro rico quando rapazinho, o buço sombreando o
lábio. Roçou pasto de plantas daninhas com foice e facão afiados, limpou
chácaras e represas com água no pescoço. Derrubou com o machado árvore grande
que servisse para fazer tábua, estaca, ripa, peça para esteio, cancela e
cumeeira de casa.
Fez calo nas
mãos, de tanto derrubar a árvore com o machado. Veio para a cidade e passou a
ser balconista numa loja da rua do comércio, que vendia artigos para campo e
cidade. O dono da loja deixava que o pai dormisse embaixo do balcão. Acordava
cedo, perto de clarear o dia. Fazia o café num pequeno cômodo, nos fundos da
loja. Bebia sem um pingo de leite, acompanhado do pão amanteigado. Usava para
fazer o asseio do corpo o pequeno banheiro da loja, com uma pia, chuveiro e
vaso sanitário. Era ele quem cedo abria a loja para o movimento do dia.
Juntou
dinheiro com parte do ordenado que ia ganhando a cada mês e se afastou do
emprego de balconista na loja. Comprou uma vendola de beira de estrada, nos
arredores da cidade. Acordava de madrugada, fazia a refeição do café da manhã,
a seguir abria a porta da frente da vendola. Morava num cômodo estreito, ele
mesmo lavava sua roupa no riacho que passava nos fundos da vendola. Ensaboava,
enxaguava, botava para secar no varal. Com a roupa seca e limpa, usava o ferro
de passar para deixá-la pronta de ser usada na semana. De segunda a sábado,
atendia na vendola os que passavam para o trabalho na cidade e ali paravam para
comprar alguma coisa ou os que voltavam das compras que faziam no comércio e se
dirigiam para as roças com os burros carregados de mantimentos.
A vendola
fora o começo de tudo para o pai fazer o patrimônio. Foi dela que teve umas
rendas miúdas, mas frequentes, dando para juntar o dinheiro que ganhava,
guardado no baú. Foi assim que com trabalho e tirocínio construiu a primeira
avenida de casinhas no outro lado do rio. Quando isso aconteceu, ele mesmo era
o pedreiro, às vezes fazia o papel de servente da obra, mexendo com a enxada a
massa de cimento, misturando-a com areia e um pouco de água, derramada na lata,
até que desse no ponto para levantar e rebocar a parede de tijolo.
Tempos
depois deu para comprar terrenos baldios nos bairros e centro da cidade.
Comprava casas velhas, reformava-as para que fossem alugadas. Um dia adquiriu
uma pequena fazenda de cacau naquela região que tinha a fama de possuir a terra
fértil, onde tudo que se plantava dava com fartura. Como as estações eram
temperadas de sol e chuva, o que se plantava vingava na hora certa.
(Capítulo do romance Do Menino Se Fez o Homem, em andamento
para ser impresso, com o selo editorial da Fundação Casa de Jorge Amado,
de Salvador.)
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Premiado no Brasil,
Portugal, Itália e México. Publicado nos Estados Unidos, Dinamarca, Rússia,
Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela UESC.
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