A propósito do conto machadiano Pílades e Orestes (ou casadinhos de fresco)
O colega fazia
conferência no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no centro do
Rio, no belo prédio construído nas primeiras décadas do século XIX, onde
funcionou a Academia Real Militar. O IFCS vai tremer, me confidenciou ele, que
chegou ao local junto comigo. Ele faria a conferência ao lado de um professor
da Universidade de Berlim, um dos maiores militantes da causa gay na Europa, o
colega precisou. Gênero, identidades e política o tema. O professor brasileiro
abriu a conferência. Leu umas frase que me soaram conhecidas.
- "A união dos
dois era tal que uma senhora chamava-lhes casadinhos de fresco". Me
lembrei das frases no conto Pílades e Orestes, do Machado . Nunca pensara em
Quintanilha e Gonçalves (os personagens do conto) desse prisma. Mas me
assustei. Alguém da plateia interrompeu brutalmente a exposição gritando "
você não vai nos dizer que Machado de Assis escreveu texto com esse viés de
gênero!"
Outros levantaram a
voz criticando o exaltadinho, pedindo silêncio. A coisa logo degringolou.
Choveram acusações, houve quem cuspisse em vizinhos de cadeira na plateia. E é
aí que eu entro. O que que o professor da Letras acha? Gelei. Tinha tido um
pesadelo horrível à noite e ainda estava sonolento. Meu professor de Latim do
Colégio Santo Antônio de Blumenau, Frei Odorico Durieux, me passava um sabão:
quer dizer que o meu aluno preferido, que consegue passar para o Português
trechos inteiros da Eneida e verter para o Latim trechos mal traduzidos para o
português, o maior latinista discente que tive até hoje, gosta, como me
disseram, de ouvir música profana que elogia belzebu e a devassidão em pura
blasfêmia?
- É só brincadeira,
respondi. É carnavalização.
Como reação, meus
dois ouvidos doeram com as palmadas tipo telefone desferidas pelo amado
professor. A pergunta da plateia do IFICS doeu igual.
Respondi
academicamente: As pulsões do personagem tornam o pecado uma realidade, mas o
leitor não é o pecador - se existisse pecado aí.
O texto alforria o
leitor . Fez-se silêncio na plateia. Também achei confusa a minha resposta, mas
me abriu espaço para sair e pegar o ônibus em direção ao Fundão. Esqueci de
precisar que madame K. estava comigo no evento - você lacrou, ela disse baixinho.
Até hoje não entendi bem o sentido de lacrou. Fui, através das janelas
embaçadas do busão, apreciando a paisagem carioca saudoso do frei Odorico. Os
ouvidos doíam.
Facebook/ Redes
Sociais, 14/09/2023
______
Godofredo de Oliveira Neto - Sexto ocupante da Cadeira nº
35, eleito em 9 de junho de 2022, na sucessão de Candido Mendes de Almeida e
recebido em 2 de setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria Machado.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário