O espelho biseautê
Para Paulo Caruso,
amigo de uma vida. Abri o e-mail de Raquel Naveira, escritora mato-grossense,
veio uma poética crônica. Ela, assim que publica na sua terra, envia aos
amigos. Fui atraído pela frase: 'Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho
de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua
mãe'. Bisotado. Há quanto, quanto tempo não lia, sentia, esta palavra?
Vi dona Maria do
Rosário, diante da penteadeira - também se dizia psyché - com espelho bisotado,
às vezes chamado de bisotê. Depois, Fanny Marracini ensinaria que em francês é
biseauté. O que significava? Por mais que olhasse para o espelho, não entendia,
só via mamãe feliz. Papai me dizia, 'não sei o que é, mas sua mãe quando se
senta na penteadeira, fica tão bonita'. Seria o biseautê? Mas o que era aquilo?
Perguntava, não
respondiam. Desconfiei que não soubessem, ou fosse coisa que criança não podia
saber. Quantas vezes eu entrava na sala, todos murmuravam 'tem criança' e se
calavam.
Custava me
explicarem o que era biseautê? Ou bisotado? Essa coisa que fazia mamãe bonita,
feliz quando saía para o cinema, para a reza na matriz, para uma festa? Mal ela
saía, eu ia para o quarto e ficava a olhar para o espelho, para meu rosto, a
fim de saber se eu estava mudado, era mais bonito. Não, não estava, era feio.
Esquisito, me condenavam.
Um dia, percebi que
na margem do espelho havia um pequena região diferente. Um mínimo rebaixo.
Chanfrado, disse vovô Vital. Quando me olhei nele, me vi bonito. Somente
naquela moldura. Assim descobri o que era biseautê. Beleza. Cada vez que
entrava no quarto, me olhava naquele estreito território, onde eu era bonito.
Seria o mesmo com mamãe?
Um dia, vi mamãe
pentear o cabelo, passar ruge, apanhar uma bola de vidro com quatro letras,
Coty, passar o perfume, meu pai entrou: 'Você está mais linda do que nunca!'.
Seria também aquele perfume?
Um dia, dia mais horrível, a funcionária que ajudava na faxina deixou cair o cabo do escovão que dava brilho no assoalho, e o espelho partiu-se em mil. A dor de mamãe. 'Meu espelho, me fazia tão linda.' Ajudei a pegar os cacos, encontrei pedaços do bisotado. E se eu guardasse um pedacinho dele, poderia mudar minha cara quando estivesse sozinho? Mudando a cara, as meninas da classe sorririam para mim, afilhado dono do bar me daria um naco do lanche dela, tão apetitoso. Um dia, a professora leu minha redação, chamava-se composição, e disse: 'Nota cem. A melhor redação do ano. Quero que todo mundo leia para saber como se faz'. Tirei meu espelho do bolso, olhei, ouvi: 'Você é o menino mais bonito da classe', dito pela Neuce, irmã da professora Lourdes.
É JORNALISTA E
ESCRITOR, AUTOR DE 'ZERO' E 'NÃO VERÁS PAÍS NENHUM'.
O Estado de S.
Paulo, 12/03/2023
https://www.academia.org.br/academicos/ignacio-de-loyola-brandao
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