Desencanto em Lima Barreto
Cyro de Mattos
Viera
ao mundo numa data aziaga para os espíritos supersticiosos: treze de maio, uma
sexta-feira, dia de Nossa Senhora dos Mártires. E o que se chama destino trama
contra ele cedo, começando com a perda da mãe, seis anos depois de ter nascido.
Parte do espírito rebelde e a cor de mulato têm raízes na figura paterna, o
tipógrafo João Henriques, filho de uma antiga escrava com um madeireiro
português. O pai não lhe reconhece a paternidade.
A cor de mulato instala-se na alma
como algo que atormenta, causando-lhe obstáculos sucessivos. Estimulado pelo
meio social vai acompanhá-lo até o fim da vida, gerando dramas marcados por uma
sociedade opressiva, que ele pretende vingar-se. A alma de inconformado vai
combater uma sociedade anacrônica, expressando-se perante o meio cultural
através do que ele rotula de estética da sinceridade. Nesse particular interage
numa literatura visceralmente voltada para as camadas proscritas da população,
no texto destituído de linguagem rebuscada, submissa a modelos europeus,
postura que era comum entre nossos escritores quando abordavam a realidade
brasileira no fim do século dezenove e início do vinte.
A imagem reinante dessa época era
a de uma fragilidade no estado de espírito de nossos escritores. Nossa
literatura possuía um corpo eclético formado pelo cruzamento e entrecruzamento
de várias correntes estéticas, tendências ou estilos. Vivia-se no Rio com o
sonho da França. E a Literatura, forma ampla de conhecimento da vida, era
concebida por alguns como o sorriso da sociedade. Ninguém podia ser chamado de
culto se não falasse nos heróis gregos e no cerco de Tróia. Como parte do
contexto que primava pelo elogio à cultura de fora, com os valores formais da
arte tradicional sem conteúdo nacional, aparece uma figura peculiar de
escritor, a do boêmio, tipo pitoresco que se dava ao prazer de contar anedotas,
fazer trocadilhos, nas portas de café e confeitarias. Nosso Parnasianismo, que
em geral praticava a arte pela arte e a precisão vocabular (mot juste),
quanto à sonoridade e ao senso colorido, embriagava muitos poetas.
A sedução de Paris, as agremiações
literárias, o hábito dos saraus artísticos, a mania de conferências e o uso das
letras na escrita sonora, em seu poder verbal pobre de significado e percepção
do drama humano, que teve em Coelho Neto um expoente, testemunham um Brasil
literário vivendo um clima de ócio cultural e inutilidade criativa.
O criador de
Policarpo Quaresma emerge dessa ambiência cultural moldada em atitudes
importadas da Europa, alma inconformada que pretendia se tornar referencial
oposto à estagnação que tomava conta de nossas letras de fim de século dezenove
e início do vinte. Uma voz indignada, em sua revolta feita de humanismo social
e humor cotidiano, vinha para contradizer como legítima prata da casa as cenas
vazias de autênticos protagonistas nacionais, as quais se desenvolviam com as
normas instituídas pelo ouropel alheio.
Reclamava o Brasil
dentro do Brasil, querendo ter o direito de se fazer ouvir aos que não cuidavam
de se interessar pelas coisas verdadeiras de nossa realidade. Munido de um
estilo liberto do complexo colonial, brasileiro na maneira de ver, sentir e
narrar as coisas nossas tomadas emprestadas ao cotidiano, Lima Barreto vai
buscar seus personagens nos subúrbios do Rio de Janeiro, lá onde gravitam
funcionários públicos, pequenos negociantes, médicos com pequena clínica,
tenentes de diferentes milícias e seresteiros.
É o precursor do romance social brasileiro. Foi uma de
minhas leituras na adolescência. Integra um de meus ensaios reunidos no livro A
Leitura Lembrada, inédito, sobre
contistas, romancistas e poetas importantes da
literatura nacional.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa
da Universidade Estadual de Santa Cruz. Publicado em Portugal, Itália, Espanha,
Alemanha, França, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Premiado no Brasil e
exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e de Ilhéus. Comendador
da Ordem do Mérito do Governo da Bahia
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