Viver sem ela?
Ignácio de Loyola Brandão
Na rodoviária,
Alzeni pediu.
'Por favor, uma
passagem para Duas Passagens.'
O bilheteiro
estendeu duas passagens.
'Quem pediu duas?
Disse uma!'
'Tenho certeza, a
senhora disse duas.'
Ela se deu conta,
caiu na gargalhada, ri fácil, contagia.
'Duas Passagens,
moço, é o lugar da Bahia onde nasci e para onde vou.'
São dois dias de
viagem. Já dissemos a ela: 'Vá de avião, te damos passagem, vai até Salvador,
pega ônibus lá'.
'Mas o ônibus de
Salvador não vai até Duas Passagens, preciso trocar duas vezes. O que sai de
São Paulo passa na porta de minha casa.'
Outro Brasil. E
desconhecemos. Há 30 anos, Alzeni trabalha em casa. Faz parte da família.
Dividimos dores e alegrias. Vai todos os anos rever os pais. A ansiedade agora
é ir, porque o pai vai fazer 100 anos e ainda moureja na roça. Tem o maior
orgulho da mãe, analfabeta, mas que, na hora de fazer contas, é um azougue. A
cabecinha, um computador. Ela paga, confere o troco, diz o que falta em um
segundo. Alzeni, no final do ano, carrega presentes para um mundão de pessoas.
Quando a energia elétrica chegou ao sertão, ela levou fogão, geladeira,
liquidificador, televisão para os pais e agora vai levar a panela que frita
tudo sem engordurar nada. Tudo no bagageiro do ônibus. O celular chegou rápido,
o longe ficou perto. O bagageiro do ônibus vem lotado, ela traz ovos caipiras
em caixas de sapato cheias de areia.
Alzeni está há 30
anos conosco. Age como se fosse minha cuidadora. 'Mediu a glicemia? Tomou o
Xigduo? Colocou colírio nos olhos? Tomou a vacina? Assinou o livro daquela
moça?' Vacina é a insulina das manhãs. 'Nem olhou para o chá de pata de vaca
que acabei de fazer.' Recomendado para baixar a glicemia, coisa de mineiro,
agora que também sou de lá.
Alzeni fala, fala,
ouve rádio, angustia-se com cada notícia ruim, liga para o filho, cuida dele,
preocupa-se com a filha, faz dezenas de chamadas por dia, cuida das irmãs, dos
parentes, muitas vezes ficamos bravos:
'Alzeni, você cuida
de todo mundo, menos de você'. Ela fica abalada com cada morte de famoso, é
íntima de todos, fica acabrunhada com agressões racistas. Dia desses, subiu ao
meu estúdio dez vezes, por causa de um assalto, aquele estupro no Piauí, um
celular roubado, etc. E falou, falou. E eu, nervoso por um texto que não saía,
disse: 'Ainda te mando embora, quero sossego.'
'Ah, é? Ruim
comigo? Mil vezes pior sem mim.'
Dei razão, rimos.
Como viver sem ela?
Jornal O Estado de
S. Paulo, 12/02/2023
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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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