Entre 90 e 190
Mil Yanomami
subnutridos, mais 700 mil mortos pela covid. Não é genocídio?
Difícil não foi ter
descoberto a doença, mas sim ter dado com ela tardiamente, obrigando-me a mudar
rotinas, vícios, hábitos aos 86 anos. Principalmente vícios, manias. Dizem que
tudo se ajeita com boa vontade. Apontem um ser humano que tenha a noção
absoluta de boa vontade. Ou não acredito na humanidade?
Agora, com a
diabete, ou o diabetes - acho pernóstico este modo de dizer - tive de me
adaptar a um aparelhinho que fica grudado em mim, a fim de
medir os níveis de
glicemia. O médico me deu os limites considerados normais e recomendou a
medição pela manhã, antes do almoço, antes do jantar, no final da noite. Ao
menos nos primeiros tempos. Os amigos Vera e Márcio, garantiram ser uma
tranquilidade, pode-se viver uma vida normal com diabete. O que é vida normal?
Aquele aparelho grudado em minha pele é um dedo-duro do bem. Mudou meu ritmo. E
virou vício. Todos lemos livros distópicos em que seres humanos são controlados
pela tecnologia. Assim me considero vivendo, comandado por um pequeno círculo,
quase uma tatuagem.
Tomei um suco.
Pode? Levo o sensor ao braço, 111. Posso. Alívio. Como um lanche na padaria com
pão branco. O sensor acusa 176. Epa! Próximo ao limite de 190 que o doutor
Ophir recomendou.
Doce? Passo longe.
Nunca mais comi doce de leite de Viçosa, doce de abóbora ou batata doce de
lanchonete de estrada, manjar branco com calda, pão de ló, bolo de rolo que a
Maria Eduarda Brennand me manda do Recife, cocada branca. Foi comer e o sensor
bater no 240 e tantos. Paniquei.
Como este sensor é
caro, uso dois por mês, recorro a outro mais barato, que me pica o dedo,
transfiro o sangue para uma plaquinha que revela o Índice. Entre um e outro há
sempre uma diferença. O do sangue é sempre mais alto. E. . . ?
Vivo na gangorra.
Medi, deu 78, ameaça de hipoglicemia, desmaio, como uma barrinha. Outra vez,
deu 65, pavor, comi um chocolatinho. Normalizou. Poder comer para combatera
hipoglicemia devia me dar prazer. Ao contrário, angustia. Mas este mundo é
louco mesmo. Nunca mais comi massa, o que adoro, principalmente um Carbonara.
Numa revolta, outro dia comi. Bebi duas taças de vinho. Depois medi. 122.
Impossível. Desconfiei do reloginho. Não se pode viver desconfiado. Troquei o
aparelho. Igual. Consulto ene vezes por dia, mas vivo bem. Sonho com números,
132, 176, 192, 214, 98, 76, 149 - aliás dá tanto 149, que não sei explicar. Nem
são números para apostar na Mega Sena. Números.
Lembrei-me de O
Homem Que Calculava, de Malba Tahan, ainda um livro curioso. Ele era feliz. Só
estou feliz entre 90 e 190. Mas, e se der pane no aparelho. . . ? Mas estou
vivo, e bem. Reclamar do quê?
O Estado de S.
Paulo, 29/01/2023
https://www.academia.org.br/artigos/entre-90-e-190
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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11,
eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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