Memória da Ponte Velha
Cyro de Mattos
Não só as cenas de tristeza, ocorrências com espanto, horror
e medo, a Ponte Velha presenciara durante o tempo que existira de pé, altaneira
e soberana no curso invariável do tempo, que tudo dá e toma. Acontecia também o
afago do vento no rosto dos namorados, na manhã morna ou na tarde fresca. Para
pessoas que moravam nos dois lados da cidade, era um corpo sólido erguido para
servir sem nada exigir em troca, dotado de vigor e beleza, que funcionava como
orgulho dos habitantes da pequena cidade. O professor Vilaboim, o que mais
entendia da história da cidade, não tinha dúvida em afirmar que ela tinha voz
oculta, boca que conversava consigo em segredo, ouvido que escutava atento aos
ruídos da natureza e os gestos das pessoas. Sua alma era profunda para nas
disposições interiores gravar com as fibras potentes de ferro e cimento tudo
que se passava através das cenas rotineiras. Era dotada de uma magia que
ninguém alcançava, nem sequer conseguia chegar perto de sua sabedoria lendária.
Um dia, os namorados chegaram de mãos dadas, debruçaram em
uma das balaustradas e dali ficaram apreciando a paisagem do rio na tarde
morna. As correntezas embaixo faziam espumas quando desciam no barulho por
entre as pedras perto da ponte. Sustentados pela leveza dos ares, dali traçaram
os sonhos com os olhos expectantes de esperança, querendo alcançar o horizonte.
Um fazia carícia no outro, beijavam-se, sorriam com a felicidade estampada no
rosto.
Outras vezes vieram com o intuito de alimentar o sonho do
amor no dia de verão morno. Pressentiam nas ondas do amor onde uma casa seria
habitada pelos hábitos do afeto, cuidaria ela dos filhos, ele com o trabalho
daria o sustento necessário para que os meninos crescessem e se tornassem um
dia pessoas respeitáveis. Ele gostava de dizer a ela que uma ponte é uma ponte,
uma rosa é uma rosa. A ponte servia para que fizessem a travessia sobre o rio
da vida e fossem alcançar na outra margem as metas melhores. A rosa emitia
fragrâncias nas horas suaves da existência, mas durava pouco. A ponte morava no
pensamento, já a rosa no sentimento. Com o equilíbrio e segurança de uma mais a
formosura de outra, regiam-se ambas pelos dons milagrosos da natureza e se
cabiam na gramática que Deus criara para a criatura não conviver com o
sentimento do nada. Tanto a ponte como a rosa reinventavam-se na proposição de
cada sonho.
* Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Detentor de prêmios
literários importantes e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de
Letras, Associação dos Críticos Literários de São Paulo, Nacional de Poesia
Ribeiro Couto (UBE-RJ), Internacional Maestrale Marengo d’Oro, Itália, duas
vezes, Menção Honrosa do Jabuti, Nacional Pen Clube do Brasil e Nacional Cidade
de Manaus. Publicado em oito idiomas.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário