Um belo
dia, naquela pacata e honesta capital de província de segunda ordem,
apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a próxima
estreia de uma excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.
Há muito
tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de
peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia.
Havia,
portanto, na cidade uma animação e reboliço desusado.
Falara-se
na vinda da companhia, mas ninguém tinha absoluta certeza de que ela viesse,
porque o empresário receava não fazer para as despesas. Agora, os cartazes,
impressos em letras garrafais, confirmavam a auspiciosa notícia, provocando um
entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para ver, certificando-se,
pelos próprios olhos, de tão grata novidade.
A
companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então
se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranquila capital.
Dois artistas, pelo menos, a primeira-dama
e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já tinha lá estado, quando
menos célebre; ele, porém, era a primeira vez que lá ia, e por isso o esperavam
com uma ansiedade fácil de imaginar.
Quando a
companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no
cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações.
Tanto a
primeira-dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores
– e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde visivelmente
comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.
A estreia
foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar
desocupado.
O presidente da província (era no tempo do império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.
Representou-se a Morgadinha de Valflor.
A
primeira-dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha
sido vista no papel da protagonista e não parecia agora superior ao que dantes
fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã,
o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.
Era um artista experimentado, com
todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às plateias
provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande
cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes
– nada faltava a Luís Fernandes para ser desejado, não só pela Morgadinha de Valflor,
como por todas as espectadoras sentimentais.
Entre
estas havia uma, a Sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso
intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.
Ela
sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em que
tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório – e, por mais
que tentasse disfarçar, não pode encobrir ao marido os violentos resultados
daquela fascinação.
Ele, o
marido, o Brites, era um sujeito
observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco
de Sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas longas cismas em noite de
luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia.
Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de Femme incomprise divagando continuamente pelo intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra.
Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho, que
reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.
Com essa
boa posição no comércio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso,
solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto,
um marido ideal.
O segundo
espetáculo da companhia foi com Romance de um moço pobre.
Observou o
sobressaltado marido que Máximo Odior causava à Sinhazinha uma impressão ainda
mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes.
Quando o
pano desceu depois da famosa cena das ruínas castelo abandonado, em que o herói
de Octave Feuiller se atira num precipício, exclamando: - Vou salvar a honra! –
Sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os
lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no
vago.
O público
aplaudiu calorosamente, chamando três vezes os artistas à cena e ela não saiu daquele êxtase.
- Que
tens?... Estás incomodada?... – perguntou o Brites.
A moça
estremeceu, passou as mãos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e
suspirou, dizendo:
- Não, não
tenho nada.
Na manhã
seguinte o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu
perfeitamente Sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do galã...
Isto
resolveu-o a atacar de frente o Minotauro.
Não deixou
perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho à hora
costumada.
Quando voltou à tarde, aproximou-se de
Sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:
- Trago-te
uma notícia que talvez te contrarie...
- Qual?
- O galã
da companhia dramática vem cá jantar amanhã.
- O galã?
- Sim: aquele que ontem fez com
tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta
de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar.
Amanhã não há espetáculo: ele está livre.
Sinhazinha,
que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação,
limitou-se a responder:
- Que
maçada!
Ela mal
dormiu durante a noite, e, no dia seguinte, agitada pela ideia de que ia ver de
perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas
febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente os
preparativos do jantar ofereceram uma espécie de derivativo àquele acesso
nervoso.
Quando, às seis horas da tarde, chegou o
galã ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse
outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na
apresentação e Sinhazinha dobrou-se à evidência.
Tinha diante de si um homem feio,
marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara
inteiramente raspada... de véspera.
A alvura
da camisa era suspeita, as botinas eram cambaias, as unhas não eram
irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas e as calças joelheiras.
A desilusão
continuou durante o jantar. O galã, aliás boa pessoa, não tinha absolutamente
conversação, nem de outro assunto tratava que não fosse da sua vida de teatro. Disse
mal dos colegas, arrastou a primeira-dama pela rua da amargura, e afirmou que
não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e
cinco filhos, em véspera de seis.
E não
sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os
dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia!
Sinhazinha
estava pasmada, e o Brites radiante.
Quando o
galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada
de todos os devaneios da sua imaginação doentia.
- Que
diferença!... Não parece o mesmo!...
- Pudera!
Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.
Alguns
meses depois havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que
reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorita.
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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo),
jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e
faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do
irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde
criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
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