No Tempo das Boiadas
No tempo em que a infância não era como hoje, com os jogos
eletrônicos sendo o divertimento dos meninos, a cidade tinha pouco
movimento de carro nas ruas. Ficava movimentada quando as tropas de
burro passavam pela rua do comércio, carregadas de cacau ensacado. Paravam em
frente aos armazéns de portas largas, onde homens fortes descarregavam do lombo
dos animais os sacos de cacau ensacado. A cidade tinha poucos prédios de dois
pavimentos. A feira ficava atrás da antiga estação ferroviária. Aos sábados,
parecia uma onda que tinha de tudo, com gente que ia e vinha, uns compravam,
outros vendiam.
O jardim próximo à beira do rio ficava na Praça Olinto Leoni,
o primeiro intendente da cidade. Os habitantes da cidade orgulhavam-se do
jardim, era um cartão postal que encantava os visitantes, diziam. Dava uma
impressão agradável a quem visse. O jardim tinha plantas e flores bem cuidadas
pelos jardineiros da prefeitura, palmeiras onde os passarinhos se
aninhavam em algazarra pelo cair da tarde, duas fontes
luminosas, um coreto para a filarmônica tocar marchas e hinos em dia
especial. Havia bancos embaixo das árvores para quem quisesse
descansar. Os velhos ali sentavam e ficavam conversando sobre os anos idos e
vividos. Os namorados davam voltas de mãos dadas pelo passeio do jardim. Quando
estavam sentados no banco, permaneciam com as mãos entrelaçadas. A moça sorria
para o rapaz que lembrava o beijo dado pelo galã nos lábios doces da
mocinha, na última fita romântica exibida no Cine Itabuna.
Uma balaustrada comprida, erguida bem perto do rio, ficava
separada do jardim pela rua calçada de pedras regulares. Por detrás da
balaustrada havia um caminho estreito, margeando o rio, por onde desciam
pequenas boiadas na direção do matadouro, construído em condições rudimentares
em um dos aclives do morro.
Um
dia combinei com dois amigos para irmos até o matadouro. Lá ficaríamos sabendo
como o boi era abatido, retalhado em pedaços de carne, os quais
seriam transportados para que fossem vendidos no açougue. Lá
chegamos calados por volta das quatro horas da tarde. Ficamos concentrados,
apreensivos, em cima de um dos muros do curral, que tinha o piso do pátio
cimentado, lá fora, como também na área debaixo do telheiro.
Então
vimos entrar no pátio do curral um boi laçado pelo homem musculoso. Foi preso
ao mourão no meio do pátio. E logo tomamos grande susto quando o homem
musculoso golpeou com as costas do machado a cabeça do boi. O animal deu um
grito estranho, ajoelhou-se e borrou de bosta o piso de cimento. Ouvimos um
baque surdo quando o bicho emborcou no chão, estrebuchando. Daí a pouco
instante, o homem musculoso começou a tirar o pelo do boi com uma faca de
lâmina afiada.
Não
quisemos ficar mais tempo no matadouro. Saímos depressa de lá, horrorizados com
a cena que acabávamos de presenciar. À noite, antes de dormir, eu
com os amigos Nei Gordinho e o Duduca armamos um plano lá na rua
para impedir que no outro dia os bois, vindos do sertão, conduzidos por
vaqueiros, chegassem até o matadouro. Nei Gordinho, o filho do funcionário do
banco, seria o encarregado de soprar o apito na esquina quando avistasse a
boiada descendo pela margem do rio e viesse se aproximando para descer pelo
caminho estreito, junto à balaustrada.
No
dia seguinte, quando ele trilou o apito três vezes, bem forte, e avistamos a
boiada se aproximando, começamos a soltar os fogos de São João na direção dos
bois, que costumavam se apertar procurando entrar no caminho estreito que
margeava o rio e a parede de pedras da balaustrada. Eu
e Duduca, o filho do farmacêutico, estávamos em nossos esconderijos,
encobertos pelos troncos de duas árvores no jardim. De lá acendíamos e
soltávamos os fogos Adrianino para que as bombas explodissem no meio da
boiada.
Logo
os bois se assustaram e se esparramaram para todos os lados. Alguns
caíram nas águas e foram nadando até o outro lado do rio. Outros saíram em
carreira desabalada, pisando plantas e canteiros do jardim. Ainda outros
entraram na rua do comércio em correria, espalhando o pânico aos comerciantes,
vexame e corre-corre às pessoas que por ali passavam pelo passeio das
lojas.
Não
sei até hoje quantos bois não seguiram naquele dia para o matadouro. Mas tenho
certeza que alguns deles, que estavam marcados para morrer, não tiveram o mesmo
destino daquele que vimos tombar sob o golpe do machado desferido pelo homem
musculoso no matadouro. E que mal teve tempo para gritar, logo caindo de
joelhos e borrando de bosta o piso cimentado do pátio. Numa cena terrível, que
nunca mais queríamos que fosse repetida, diante de nossos olhos
espertos de meninos, ansiosos de descobertas e desafios na aventura da
vida.
Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, cronista, ensaísta e
autor de literatura infantojuvenil. Membro efetivo da Academia de Letras da
Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC (Bahia).
Possui prêmios importantes. Publicado no exterior.
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