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quarta-feira, 27 de julho de 2022

NO TEMPO DAS BOIADAS - Cyro de Mattos



No Tempo das Boiadas

 Cyro de Mattos

 

            No tempo em que a infância não era como hoje, com os jogos eletrônicos sendo o divertimento dos meninos, a  cidade tinha pouco movimento de carro nas ruas.  Ficava movimentada quando as tropas de burro passavam pela rua do comércio, carregadas de cacau ensacado. Paravam em frente aos armazéns de portas largas, onde homens fortes descarregavam do lombo dos animais os sacos de cacau ensacado. A cidade tinha poucos prédios de dois pavimentos. A feira ficava atrás da antiga estação ferroviária. Aos sábados, parecia uma onda que tinha de tudo, com gente que ia e vinha, uns compravam, outros vendiam. 

            O jardim próximo à beira do rio ficava na Praça Olinto Leoni, o primeiro intendente da cidade. Os habitantes da cidade orgulhavam-se do jardim, era um cartão postal que encantava os visitantes, diziam. Dava uma impressão agradável a quem visse. O jardim tinha plantas e flores bem cuidadas pelos jardineiros da prefeitura,  palmeiras onde os passarinhos se aninhavam em algazarra pelo cair da tarde, duas  fontes luminosas,  um coreto para a filarmônica tocar marchas e hinos em dia especial.  Havia bancos embaixo das árvores para quem quisesse descansar. Os velhos ali sentavam e ficavam conversando sobre os anos idos e vividos. Os namorados davam voltas de mãos dadas pelo passeio do jardim. Quando estavam sentados no banco, permaneciam com as mãos entrelaçadas. A moça sorria para o rapaz que lembrava o beijo dado pelo galã  nos lábios doces da mocinha,  na última fita romântica exibida no Cine Itabuna.

            Uma balaustrada comprida, erguida bem perto do rio, ficava separada do jardim pela rua calçada de pedras regulares. Por detrás da balaustrada havia um caminho estreito, margeando o rio, por onde desciam pequenas boiadas na direção do matadouro, construído em condições rudimentares em um dos aclives do morro.

             Um dia combinei com dois amigos para irmos até o matadouro. Lá ficaríamos sabendo como o boi era abatido, retalhado em pedaços de carne, os quais seriam  transportados para que fossem vendidos no açougue. Lá chegamos calados por volta das quatro horas da tarde. Ficamos concentrados, apreensivos, em cima de um dos muros do curral, que tinha o piso do pátio cimentado, lá fora, como também na área debaixo do telheiro.

            Então vimos entrar no pátio do curral um boi laçado pelo homem musculoso. Foi preso ao mourão no meio do pátio. E logo tomamos grande susto quando o homem musculoso golpeou com as costas do machado a cabeça do boi. O animal deu um grito estranho, ajoelhou-se e borrou de bosta o piso de cimento. Ouvimos um baque surdo quando o bicho emborcou no chão, estrebuchando. Daí a pouco instante, o homem musculoso começou a tirar o pelo do boi com uma faca de lâmina afiada. 

             Não quisemos ficar mais tempo no matadouro. Saímos depressa de lá, horrorizados com a cena que acabávamos de presenciar. À noite, antes de dormir, eu com  os amigos Nei Gordinho e o Duduca armamos um plano lá na rua para impedir que no outro dia os bois, vindos do sertão, conduzidos por vaqueiros, chegassem até o matadouro. Nei Gordinho, o filho do funcionário do banco, seria o encarregado de soprar o apito na esquina quando avistasse a boiada descendo pela margem do rio e viesse se aproximando para descer pelo caminho estreito, junto à balaustrada.

              No dia seguinte, quando ele trilou o apito três vezes, bem forte, e avistamos a boiada se aproximando, começamos a soltar os fogos de São João na direção dos bois, que costumavam se apertar procurando entrar no caminho estreito que margeava o rio e a parede de pedras da balaustrada.  Eu e  Duduca, o filho do farmacêutico, estávamos em nossos esconderijos, encobertos pelos troncos de duas árvores no jardim. De lá acendíamos e soltávamos os fogos Adrianino para que as bombas explodissem no meio da boiada. 

            Logo os bois se assustaram e se esparramaram para todos os lados.  Alguns caíram nas águas e foram nadando até o outro lado do rio. Outros saíram em carreira desabalada, pisando plantas e canteiros do jardim. Ainda outros entraram na rua do comércio em correria, espalhando o pânico aos comerciantes, vexame e corre-corre às pessoas que por ali passavam pelo passeio das lojas.  

           Não sei até hoje quantos bois não seguiram naquele dia para o matadouro. Mas tenho certeza que alguns deles, que estavam marcados para morrer, não tiveram o mesmo destino daquele que vimos tombar sob o golpe do machado desferido pelo homem musculoso no matadouro. E que mal teve tempo para gritar, logo caindo de joelhos e borrando de bosta o piso cimentado do pátio. Numa cena terrível, que nunca mais queríamos que fosse repetida,  diante de nossos olhos espertos de meninos, ansiosos de descobertas e desafios na aventura da vida.  

 

Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, cronista, ensaísta e autor de literatura infantojuvenil. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC (Bahia).  Possui prêmios importantes. Publicado no exterior.

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