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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Carta a José Saramago

Cyro de Mattos



                   Escritor José Saramago:

                É muito bom saber que graças à sua arte de imaginar o mundo, através da palavra simbolizada, faz-se o reconhecimento justo aos seus serviços prestados à cultura e à língua portuguesa. Louvo e aplaudo quando tomo conhecimento de que a crítica especializada e seus leitores espalhados pelo mundo o consideram como o responsável pelo enorme reconhecimento internacional da prosa de ficção em língua de Camões e Pessoa.  Nada mais justo e merecido que os galardões postos em suas mãos traduzam o valor elevado de um escritor inovador na linguagem e técnica narrativa, criador de gente que causa espanto porque concebida e executada em universo literário riquíssimo, resultante de engenho e arte perante os conflitos da existência.

O prêmio Camões e o Nobel de Literatura caíram nas suas boas mãos, chegaram para engradecer um legado que abrilhanta o reino da ficção em língua portuguesa. Minhas afirmações procedem das lições que extraio quando faço incursões no mundo fantástico de seus romances. Há pouco tempo reli Ensaio sobre a cegueira, romance que outra vez me forçou a refletir sobre as questões profundas da existência. Em contato com o mundo absurdo de seres humanos, que de repente perdem a visão, vi o quanto somos contraditórios, limitados, primitivos e inconsequentes.  Privados de um órgão importante como a visão nos tornamos instintivos, animais estranhos, vivendo uns com os outros como seres sem rumo, por entre atritos e conflitos, que não fazem o menor sentido.   

Uma fábula moderna esse romance, como ocorre com outros, que trazem a sua marca de abrangência e compreensão dos problemas agudos dos seres humanos em certas circunstâncias críticas. É a própria consciência do personagem que revela seus tormentos no discurso que, embora simbólico, torna-se, como em Faulkner, intensamente aflitivo quando expõe os níveis psicológicos e sociais de nossas duras realidades.   

        Pode ser vista como metáfora dos sombrios tempos atuais, pois há nele um autor visionário pujante e denso, que sabe manejar como poucos   um conjunto de humanidades, contradições e incertezas que invadem um texto certeiro, que se alarga pelos desvãos da alma, expõe verdades que correspondem à nossa condição nos dramas do mundo.  

           O ensaísta, no imaginário do ficcionista, sabe tanto quanto qualquer um que a cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que veio ao mundo.  Nesse romance onde se cruzam literatura e sabedoria, presencia-se que a cegueira pode ter outra perspectiva, impregnada de horrores alastra-se rapidamente em forma de epidemia e nos ensina como dolorosamente regredimos na escala biológica quando somos feitos dessa massa, a ruindade e a indiferença.

A imagem aterradora da vida que acontece nesta obra admirável, também um texto de ficção em que entra o amor, no qual o ladrar é o falar, é a de uma verdadeira viagem às trevas, com a personalidade de um autor que se insinua com o seu discurso virtuoso, inovador, aciona, e bem, particularidades de nossa essência composta de negações.

Não se trata de romance de fácil apreensão, a epígrafe foi tirada do Livro dos saberes:“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.  Daí que se pode refletir que aquele que melhor vê é quem observa, separa, seleciona, com lucidez julga, com serenidade ao outro abraça.  Retira da matéria as luzes que acendem  os caminhos na parte noturna do ser.

          A sua declaração sobre este romance estranho de que era um livro intencionalmente terrível com o qual queria que o leitor sofresse tanto como o autor ao escrevê-lo, faz pensar que não existe uma literatura profunda sem que aconteçam os romances que tenham como eixo narrativo o sofrimento, as solidões emanadas da infelicidade.  Com suas longas torturas, violências brutais, fluidez constante das questões  agudas.  

         Obra assustadora, com sua feição de terror e dor, transmite enorme humanidade cheia de sofrimento, ao passar uma imagem incompreensível do que podemos ser em circunstâncias adversas. De sua percepção do mundo  transbordam sentimentos perversos, baixas gradações de nossa condição em cada cena  violenta dos que perderam os rumos da vida.  A escrita é  intensamente sofrida nessa obra, elevando o autor  à dimensão dos maiores cronistas  visionários da literatura ocidental, como é o caso de Kafka, Ionesco, Becket, Jorge Luís Borges e, entre nós,  o mágico José J. Veiga. 

         Esses narradores cheios de símbolos, travestidos em cronistas do absurdo,  dos quais  promana  um tempo histórico e uma visão  universal inadmissível da existência, configuradores nas suas criações de um  espaço habitado pelo ser humano como um pesadelo angustiante e  opressivo.  

Terminando, só me resta agradecer pela obra magnífica que temos ao percorrer a sua lavra criativa,  na qual vivenciamos a compreensão de nossos passos  nas zonas misteriosas do viver e do morrer.

          Obrigado, obrigado.

           De seu leitor curioso.

           Cyro  de Mattos  

 

 

*Cyro de Mattos é autor de 62 livros pessoais, de diversos gêneros. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Traduzido e publicado nos Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Alemanha, Rússia e Dinamarca. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. 

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