Carta a José Saramago
Cyro de Mattos
É muito bom saber que graças à sua arte de imaginar o mundo, através da palavra simbolizada, faz-se o reconhecimento justo aos seus serviços prestados à cultura e à língua portuguesa. Louvo e aplaudo quando tomo conhecimento de que a crítica especializada e seus leitores espalhados pelo mundo o consideram como o responsável pelo enorme reconhecimento internacional da prosa de ficção em língua de Camões e Pessoa. Nada mais justo e merecido que os galardões postos em suas mãos traduzam o valor elevado de um escritor inovador na linguagem e técnica narrativa, criador de gente que causa espanto porque concebida e executada em universo literário riquíssimo, resultante de engenho e arte perante os conflitos da existência.
O prêmio
Camões e o Nobel de Literatura caíram nas suas boas mãos, chegaram para
engradecer um legado que abrilhanta o reino da ficção em língua portuguesa.
Minhas afirmações procedem das lições que extraio quando faço incursões no
mundo fantástico de seus romances. Há pouco tempo reli Ensaio sobre a
cegueira, romance que outra vez me forçou a refletir sobre as questões
profundas da existência. Em contato com o mundo absurdo de seres humanos, que
de repente perdem a visão, vi o quanto somos contraditórios, limitados, primitivos
e inconsequentes. Privados de um órgão
importante como a visão nos tornamos instintivos, animais estranhos, vivendo
uns com os outros como seres sem rumo, por entre atritos e conflitos, que não
fazem o menor sentido.
Uma fábula moderna
esse romance, como ocorre com outros, que trazem a sua marca de abrangência e
compreensão dos problemas agudos dos seres humanos em certas circunstâncias
críticas. É a própria consciência do personagem que revela seus
tormentos no discurso que, embora simbólico, torna-se, como em Faulkner,
intensamente aflitivo quando expõe os níveis psicológicos e sociais de nossas duras
realidades.
Pode ser vista como metáfora dos
sombrios tempos atuais, pois há nele um autor visionário pujante e denso, que
sabe manejar como poucos um conjunto de humanidades, contradições e
incertezas que invadem um texto certeiro, que se alarga pelos desvãos da alma,
expõe verdades que correspondem à nossa condição nos dramas do mundo.
O ensaísta, no imaginário do
ficcionista, sabe tanto quanto qualquer um que a cegueira é uma questão privada
entre a pessoa e os olhos com que veio ao mundo. Nesse romance onde se cruzam literatura e
sabedoria, presencia-se que a cegueira pode ter outra perspectiva, impregnada
de horrores alastra-se
rapidamente em forma de epidemia e nos ensina como dolorosamente
regredimos na escala biológica quando somos feitos dessa massa, a ruindade e a
indiferença.
A imagem aterradora da vida que acontece nesta
obra admirável, também um texto de ficção em que entra o amor, no qual o ladrar
é o falar, é a de uma verdadeira viagem às trevas, com a personalidade de um
autor que se insinua com o seu discurso virtuoso, inovador, aciona, e bem, particularidades
de nossa essência composta de negações.
Não se trata de romance de fácil apreensão,
a epígrafe foi tirada do Livro dos
saberes:“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Daí que se pode refletir que
aquele que melhor vê é quem observa, separa, seleciona, com lucidez julga, com
serenidade ao outro abraça. Retira da matéria as luzes que
acendem os caminhos na parte noturna do
ser.
A sua declaração sobre este romance estranho
de que era um livro
intencionalmente terrível com o qual queria que o leitor sofresse tanto como o
autor ao escrevê-lo, faz pensar que não existe uma literatura profunda sem que
aconteçam os romances que tenham como eixo narrativo o sofrimento, as solidões emanadas
da infelicidade. Com suas longas
torturas, violências brutais, fluidez constante das questões agudas.
Obra assustadora, com sua feição de
terror e dor, transmite enorme humanidade cheia de sofrimento, ao passar uma
imagem incompreensível do que podemos ser em circunstâncias adversas. De sua
percepção do mundo transbordam
sentimentos perversos, baixas gradações de nossa condição em cada cena violenta dos que perderam os rumos da
vida. A escrita é intensamente sofrida nessa obra, elevando o
autor à dimensão dos maiores
cronistas visionários da literatura
ocidental, como é o caso de Kafka, Ionesco, Becket, Jorge Luís Borges e, entre
nós, o mágico José J. Veiga.
Esses narradores cheios de símbolos,
travestidos em cronistas do absurdo, dos
quais promana um tempo histórico e uma visão universal inadmissível da existência,
configuradores nas suas criações de um
espaço habitado pelo ser humano como um pesadelo angustiante e opressivo.
Terminando, só
me resta agradecer pela obra magnífica que temos ao percorrer a sua lavra
criativa, na qual vivenciamos a
compreensão de nossos passos nas zonas
misteriosas do viver e do morrer.
Obrigado, obrigado.
De seu leitor curioso.
Cyro de Mattos
*Cyro de Mattos é autor de 62 livros pessoais, de diversos gêneros. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Traduzido e publicado nos Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Alemanha, Rússia e Dinamarca. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.
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