Jô 2: Ser H na vida
As noites de nosso grupinho com Jô Soares começavam com um
rabo de galo no 'Jeca', esquina da Ipiranga com São João, ainda não tanto
celebrada. Aperitivo para diminuir o estresse do dia, se é que aquilo era
estresse, adorávamos a tensão jornalística. Prosseguíamos com uma parada num
banco da Praça da República para decidir onde ir. Ficávamos ali entre oito e
meia e nove. Parece loucura, o tempo era outro. Hoje não atravesso praça ao
meio-dia.
A decisão era a mesma, jantar no Clubinho, o Clube dos
Artistas e Amigos da Arte, no porão do Instituto dos Arquitetos, na Rua Bento
Freitas. Durou de 1945 aos anos 70. Bebida e comida baratas e um picadinho
imbatível (que reencontrei agora no Bar da Dona Onça, da Janaína Rueda). Ali
estavam, sempre, Polera, pianista - que, se não me engano, era irmão de Joubert
de Carvalho, autor da canção Maringá -, Rebolo, Mario Gruber e Clovis Graciano,
Sérgio Milliet, Arnaldo Pedroso d'Horta, Marcos Rey e seu irmão e Mário Donato,
cujo romance Presença de Anita tinha sido best-seller fenomenal, o que levava
Jô a dizer, 'o melhor pornô que já li, dá tesão e é boa literatura'.
Ali circulava Maiza Strang da Rocha, jovenzinha, autora de
um romance, Incerteza, de 1959, que deu uma entrevista ao nosso Dorian Jorge
Freire dizendo coisas como 'o homem esquece que a mulher tem direito de ter
sexo' - ou seja, foi pioneira do feminismo. Pela entrevista, Jô, naquela noite,
pagou o jantar de todos e, imenso, redondo, abraçou apertado o Dorian, que
pequenino, magérrimo, quase foi sufocado.
As noites eram longas e os lugares, muitos. Vinha o roteiro
dos 'inferninhos', designação estranha, nunca definida. Eram bares onde rolava
prostituição disfarçada. Ali as mulheres ficavam à espera do chamado dos homens
para uma bebida e o acerto do quantum pelo programa. A região era a boca de
luxo. Aquelas mulheres deviam ter sempre ao lado um homem que era um falso
noivo, falso marido, etc. Este acompanhante era chamado de 'H' e era pago pelo
dono da boate para fingir companhia. Não era um cafetão. Jô, Gilberto di Pierro
- antes de ser o célebre colunista Giba Um -, Marco Antonio Rocha - depois
editorialista deste jornal - , o jornalista José Roberto Pena, um dos criadores
da revista Quatro Rodas, David Aierbach, comentarista político, e eu, algumas
vezes consideramos a possibilidade de, tendo fracassado na vida, quando velhos,
lá pelos 60 anos, sermos um H, sem nada a fazer, sentados num bar, ganhando um
uísque, talvez obtendo uma graça de graça de uma daquelas jovens. Dorian e Pena
morreram há muito anos, Marco e eu sobrevivemos, Jô tornou-se um gênio que
deixou um vazio no ar. Lamento, continuarei.
O Estado de S. Paulo, 28/08/2022
Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da
ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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