Cyro de Mattos publica
livro sobre Jorge Amado
O escritor Cyro de Mattos acaba de publicar o livro Os saberes nas narrativas de Jorge Amado, reunindo 18 ensaios sobre a obra do famoso romancista, numa coedição da Fundação Casa de Jorge Amado e ALBA, editora da Assembleia Legislativa da Bahia. O livro traz o prefácio “Cyro Mattos e Jorge Amado: um encontro Grapiúna”, assinado pelo professor doutor em Letras Nelson Cerqueira, poliglota, membro da Academia de Letras da Bahia, ensaísta e ficcionista, e o posfácio “Cyro de Mattos pisando chão verdadeiro”, de Ângela Fraga, escritora e presidente da Fundação Casa de Jorge Amador (Salvador).
Este é o quinto livro de ensaio de Cyro de Mattoso, também é
o quinto publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado, com o selo editorial Casa
de Palavras. Os outros foram Berro de Fogo e outras histórias, Canto a Nossa
Senhora das Matas, Poemas Ibero Americanos e Canto até hoje, obra poética
reunida, Prêmio das Arte Jorge Portugal, da Fundação Cultural do Estado e Lei
Aldir Blanc. Ele já publicou 62 livros de criação pessoal e possui 15 livros
publicados por editoras europeias.
Os ensaios inclusos em Os saberes nas narrativas de Jorge
Amado são estes: O menino grapiúna, Romances da juventude, Negro valente e
brigão, Mar de amor e morte, Meninos abandonados, Universo do cacau, Incursão
em Itabuna, Da caatinga para o desconhecido, Vadiagem e marinhagem, Pastores da
noite, Numa tenda dos milagres, Uma flor entre dois maridos, Duas mulheres
guerreiras, Uma história de feitiçaria, O romancista acadêmico, O criador de
personagens, Prosador e poeta, Autor para a garotada.
Cyro de Mattos e Jorge Amado: um encontro grapiúna*
Por
Nelson Cerqueira**
É um encanto o encontro temático que Cyro de Mattos realiza
com Jorge Amado ao apresentar em seu livro de ensaios um rico conjunto de
saberes sobre a obra do famoso romancista baiano. Nas leituras de romances e de
outros aspectos importantes, o ensaísta aborda primeiro a infância do
romancista quando era ainda um menino grapiúna, na época da conquista da terra.
Incursiona depois sobre o universo do
cacau, prossegue com os comentários sobre o fazer literário, no qual contempla
estudos sobre os temas, personagens, invenções com base na realidade popular,
enfim, em tudo que da narrativa prazerosa possa expressar uma forma de
biografia da vida no ato da escrita.
No aspecto construtivo do uso do saber da vida transposto
para o plano do fazer literário, o ensaísta dá-nos uma visão humanista da
criação e da vida existencial do célebre escritor. Suas leituras assim sobre o legado amadiano
facilitam o entendimento de uma obra de valor inconfundível para os novos e
velhos leitores. Estão tão bem urdidas acerca do comportamento feito de saberes
na escrita sensual e no imaginário do romancista que bem poderia esse livro de
ensaios funcionar como um manual literário para alunos da escola secundária,
das faculdades de letras e até mesmo para estudiosos que se disponham a rever e
refazer conceitos assumidos e propalados.
Sem falar na contribuição que poderia prestar a muitos
segmentos da crítica formalista que impera no meios acadêmicos e
universitários, nas mentes tradicionais às vezes tendenciosas, através de
interpretações engajadas, padrões de dominância analítica municiadas pelos preconceitos, situados esses
no discurso crítico conforme concebe Hans Georg Gadamer, em Wahrheit und
Methode, e até mesmo Francis Bacon, em seu Novum Organum, quando nos alerta
para os ídolos cultivados na escuridão, nas imagens pelas quais se pode ficar
aprisionado, sem ver a claridade dos seres e coisas nem vislumbrar uma face da
verdade.
As narrativas de juventude, junto com o universo do cacau,
pela primeira vez aparecendo na obra de Jorge uma incursão romanesca em
Itabuna, se constituem em capítulos capilares para a hermenêutica de romances
como Cacau, Terras do Sem Fim, Gabriela, Cravo e Canela, São Jorge dos Ilhéus,
A Descoberta da América pelos Turcos e Tocaia Grande. Os saberes são
apresentados aqui pelo ensaísta de forma erudita, referidos em crítica textual
eclética, na qual são selecionadas personagens como testemunhas reais e fictícias,
de acordo com o que se encaixa melhor para o resultado desejado no estudo.
Nenhum personagem ou momento existencial descrito recebe favorecimento teórico,
ao invés disso o ensaísta sempre vai descrevendo e provocando a reflexão do
leitor, auxiliando-o na fixação de sua opinião, para assim ir mostrando o texto
impregnado de lucidez interpretativa com os elementos extrínsecos e intrínsecos
necessários à elucidação da escritura em conexão com a vida, tanto na forma
quanto no conteúdo para conseguir o efeito.
Parece que Cyro está abraçado com o melhor da crítica do
século XIX quando se escrevia sem viés de preferência diante de um manuscrito,
com uma disposição poética e alexandrina que impressionavam. Conscientemente
usa elementos de muitas teorias literárias e filosofias da interpretação da
obra e assim permite que as ideias se interconectem com a fatura romanesca de
Amado, com sua existência, seu conhecimento abundante dos seres e das coisas,
valores, razões, pensamento mágico e lógico, linguagens literárias e populares.
Os saberes são apresentados, passo a passo, como numa atitude rosácea,
conduzida por uma variedade de estilos, que nos lembram a lição de Hume quando
observa que não existe um único caminho para se chegar à beleza, e pode ser,
por isso mesmo, o que Cyro preferiu nesse modelo de práxis literária com
diversos prismas para comentar os saberes de Jorge. O ensaísta debruça-se
principalmente sobre fontes primárias do saber e do fazer, ao mesmo tempo que
cobre o espaço de uma cultura mestiça do povo baiano com a variedade de ângulos
que elaborou com felizes descobertas e achados importantes no correr do estudo.
O capítulo analisando Capitães da Areia está tão bem urdido
que me trouxe de volta a análise que fiz das apropriações de Amado do universo
medieval, a narrativa centrada em Pedro Bala, louro com sua cicatriz vermelha,
a liderar o grupo, fugindo da tentativa bastarda de transformá-lo em negro,
para atender a supostos preceitos do politicamente correto, tão em voga nesses
dias de desvario em que se deseja até queimar todo o acervo de Monteiro Lobato.
O enfoque desse romance de aspirações sociais mostra como nesses pobres meninos
abandonados na areia acontecem mazelas, que são as de hoje, e que já existiam
na década de 30, mas ainda recalcitrantes quase cem anos depois, no novo
século.
Em certo momento da leitura que fiz preferi também ficar com
o ângulo idealizado de Amado no que diz respeito à imagem de personagens com a
dimensão dos contrastes raciais, dentro das discussões da época, lideradas por
Gilberto Freire em sua tese de estudos multirracial, escrita sob a orientação
de Franz Boas, vinculada a uma época em que se buscava novas ideias sobre raças
para dar uma resposta ao crescente arianismo defendido por Adolf Hitler.
As narrativas de pesquisas e memórias, contidas nesses
saberes de Jorge Amado, abordando a cidade da Bahia assentada numa cultura
popular mestiça e sua preferência pela vida urbana, com feitiçarias e heróis
míticos como os de Os Pastores da Noite e Tenda dos Milagres, assim como os
ensaios sobre as mulheres heroínas e guerreiras com suas imagens impregnadas de
ousadia e coragem, são todas elas
excelentes leituras para compreender a dimensão do ficcionista e seu
compromisso com as questões sociais, lutas de classe e escárnio à burguesia
dominante.
É magnífica
a interpretação do ensaísta sobre a realidade da vida popular no romance de Jorge Amado, como um dos
saberes configurado na expressão mística, fantástica, mágica, socialista,
enfatizado em Tenda dos Milagres, Os Pastores da Noite, O Sumiço da Santa e Dona
Flor, mas que navega em toda a narrativa do romancista, desde País do Carnaval,
a englobar, até mesmo, seu relato de caráter autobiográfico, onde existência e
imaginação se misturam como vinho e água durante certa navegação de cabotagem.
O ensaísta
Cyro de Mattos teve a iluminação para tratar de todas as variações de realismos
e estilos literários usados por Jorge Amado de uma forma poética e grapiúna,
dialogando com os pés na terra, viajando por toda complexificação do flutuar de
teorias, usando aqui a ali alguma fonte teórica, mas mantendo em suas leituras
dos saberes a base maior para o entendimento do autor: sua fortuna crítica
literária. Do ponto de vista crítico é marcante como esse conjunto de ensaios
ou crônicas teorizantes sobre o amado escritor baiano adote como pano de
pesquisa as obras do romancista e uma dose de referências a muitas ações
conjuntas, de amizade, advindas das relações sociais, vivências e convivência
no mundo grapiúna, no universo pré-místico do cacau, e que também inclui nelas
a religiosidade trazida pelos descendentes de africanos, sobretudo a religião
dos orixás, ijexá e dos Bantus de Angola e sul da África.
Os capítulos sobre o criador de personagens, o prosador e o
poeta, não podem deixar de ser apreciados com cuidado, em razão de sua riqueza
de detalhes.
Resulta esse livro de um conjunto de ensaios que produzem
uma análise clara e imprescindível para o conhecimento da obra de Jorge Amado.
O ensaísta Cyro distribui também farto conhecimento sobre os personagens
masculinos e femininos. Aponta como ocorre a fusão entre engenho e arte para
traçar o modo de construção desses protagonistas, tanto no romancista estudado
como em outros da grandeza de Machado de Assis e Graciliano Ramos. Tem razão
quando pergunta como esquecer Baleia, de Graciliano Ramos, Moby Dick, de
Melville, Dona Flor ou Pedro Archanjo, do autor de Tenda dos Milagres, personagens
que ocupam lugar de destaque na galeria das fascinantes criações de todos os
tempos, eternizadas como referências obrigatórias na literatura ocidental.
Por fim, lembremos que Jorge Amado rompeu com o partido
comunista, mas permaneceu, em toda sua dimensão de construção narrativa, ligado
às verdades essenciais de um sistema organizado com feição igualitária. Podemos
ver isso na delimitação de personagens, dentro da estética com mensagens de
teor libertário conduzido para um mundo melhor. Escreveu neste sentido a fábula
infantil O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, tão bem lembrada por Cyro em um de
seus lúcidos ensaios.
*Grapiúna é assim chamado o pioneiro ou o que nasceu no
tempo da conquista da terra. Ao longo
dos anos, o termo passou a significar aos que se identificam com as tradições e
valores de uma civilização criada com bases na lavra do cacau, no sul da
Bahia.
**Nelson Cerqueira é escritor, tradutor, poeta, professor
doutor em Letras.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário