A Paixão segundo Cony
Li de uma só vez, com duas pausas, se muitas, da
madrugada ao amanhecer, o romance póstumo do inquieto e fascinante Carlos
Heitor Cony. Como quem descobre uma carta não enviada, perdida numa
gaveta entreaberta, sem destinatário – a todos e ninguém –,
consignado, muito embora, o remetente, num jogo de espelhos remissivos.
Faltou pouco para escoimar uma e outra parte, cortes e acréscimos, como
deixou claro, na última revisão, suspensa em 2005, através de um
movimento pendular: frontal e irresoluto, áspero e compassivo. Acenos de
utopia e desencanto, estrela e solidão, no céu escuro deste século.
Livro que flui para o leitor, na lisa superfície da narrativa, mas
que se escreve sob dura condição, áspera e irregular. Legato que
repousa na soma de staccati.
Se a intenção do autor não atinge a totalidade que
impôs a seus papéis – crítico feroz –, a intenção da obra resulta compacta
e orgânica. Diria mesmo autossustentável. Entre as duas intenções, da obra e do
autor, é privilégio de quem lê discernir os domínios da reta e o pontilhado, o
que podia ter sido e o que ficou, na matéria verbal, na música do pensamento. A
última parte, quando cresce a tensão entre ato e potência, surge como
plano-piloto ou diário das personagens, na translúcida beleza, de que cada
fragmento é portador.
A potência de Cony, feita de rocha e magma, segue
irrefutável. O estilo firme, castigado, objetivo. Corte nervoso, dicção
poética. A Paixão é romance de sabor carioca, erudito e popular, sem
linhas divisórias. Vila Isabel, Gávea, Alto da Boa Vista. Cidade que remete a
um programa literário, entre Lima Barreto e Machado de Assis. A rua e o
seminário. Os delírios de Brás Cubas e Policarpo incidem no sonho de
Mateus, não importa se de olhos abertos ou fechados, com deslocamento de
planos, pontos de vista flutuantes, desejos e figuras. Texto primoroso, de
conteúdo latente, que avança, e retrocede, segundo o índice do mistério da
iniquidade, autêntico motor de sua ficção, base de sua razão existencial.
Cony jamais renunciou à dúvida metódica, ao entrechoque do
novo com o antigo, mas sem querelas inúteis: sagrado e profano, utopia e
distopia, Roma tropical, encarnada no Rio, e a outra, latina e metafísica,
segundo uma deriva necessária. Esse entrechoque deu-lhe o sal da rebeldia,
recusa e adesão. Sic et Non, podia ser o seu mote. Sentinela da noite
e dos sentidos: “cuidar do estilo, mantendo unidade da primeira parte, ou
preferir uma incursão declarada ao estilo misterioso e potente das duas
introduções finais, do Orto e do Deserto”. Isto e aquilo, a revisão em
processo, a uni- dade da escrita e o capítulo tomista, aquele da unidade,
ferido, todavia, pelo mistério.
Não faltam hipóteses para explicar a reserva do autor sobre
o romance e sua adesão aos véus do silêncio. Importa referir, contudo, que o
mérito de vir a público é todo de Regina Cony, que tomou a sábia decisão no
auge da pandemia, de publicá-lo. Não como preito restrito à memória do autor,
mas como quem enriquece a literatura brasileira, pela força imanente da paixão,
que é de Cony e de Mateus.
Jornal de Letras de Lisboa, 27/07/2022
https://www.academia.org.br/artigos/paixao-segundo-cony
Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018, 2019, 2020 e 2021.
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