Médicos e Remédios
Helena Borborema
Itabuna
sempre teve excelentes médicos. Em épocas passadas, quando não havia ainda
hospital na cidade, nem pronto-socorro, os médicos que aqui se estabeleceram
realizaram maravilhas, verdadeiros milagres quando não contavam com os muitos
recursos que existem hoje na área da medicina. Um médico sozinho desempenhava
todos os tratamentos, tanto em adultos como em crianças. Não havia
especialidade para isso ou aquilo. Um médico fazia partos, tratava de febres,
doenças infantis, varíola, gripes epidêmicas, fraturas, pequenas cirurgias de
emergência e, o que era de espantar, apesar da falta de recursos no meio e na
própria medicina, quando não se falava aqui em antibióticos,
eletrocardiogramas, ultrassom, radiografias e recursos outros, ele lutava para
atingir o melhor com a sua competência e conhecimento.
Em tempos
difíceis como aqueles primeiros de Itabuna como vila e como cidade nascente,
sem meios de transporte a não ser o burro, o médico estava sempre pronto para
atender a qualquer chamado de emergência, a qualquer hora do dia ou da noite,
na cidade e na zona rural, indo a pé, se a casa era perto, percorrendo ruas
escuras e becos perigosos pelas tocaias, ou montado a cavalo, se a casa era
afastada. Às vezes tinha de atravessar pedaços de cacauais, iluminado pela
candeia do acompanhante, ou atravessar de canoa ou balsa um rio cheio, pondo em
risco a própria vida, apesar de saber que não receberia nenhum pagamento, mas
sabendo que uma vida estava a depender dele: uma mulher que se esvaía em trabalho
de parto difícil sem que a parteira pudesse fazer mais nada, uma criança
ardendo em febre, um pai de família prostrado por algum mal, sem socorro, sem
nenhuma assistência. Às vezes a remuneração era uma carga de milho verde, um
caçuá de laranjas, ou uma leitoa, um peru. Sei que a lembrança deles ficou
gravada na memória e no coração de muita gente de Itabuna. Há o caso do Dr.
Soares Lopes, que aqui clinicava, e teve de atender a um homem trazido da roça
dentro de uma rede, em situação crítica, com o corpo várias vezes perfurado
pelas balas de dois jagunços. A salvação seria uma cirurgia de emergência. Mas
onde, se não havia hospital? Naquela situação
difícil, pediu o Dr. Soares Lopes que lhe arranjassem uma sala vazia ou
um galpão e uma mesa, e a operação foi feita com toda aquela precariedade. Um
braço foi amputado acima do cotovelo. Os ossos de uma perna e um queixo
quebrados pelas balas foram consertados, e ou outros orifícios de tiros, tratados.
Eu, menina, conheci o homem muitos anos depois do fato, já envelhecido, puxando
de uma perna, um braço amputado, com duas fundas cicatrizes no peito, andando
na rua e trabalhando ativo numa banca de jogo na praça Adami, como eu o vi numa
noite de Natal. Isto graças à presteza e coragem de um médico do interior, que
guardava sob a sua modéstia a alma de um santo e a competência de um grande
profissional da medicina.
Houve em
Itabuna outra figura de médico um tanto diferente dos demais por sua extrema
simplicidade. Era o doutor Ápio Lopes, muito procurado pela confiança que a
clientela tinha em suas receitas. Modesto, pouco ligava para a sua aparência
pessoal e do consultório. Não sei quando chegou a Itabuna, nem de onde veio, já
o conheci bem velho. Tinha consultório numa das ruas do centro, a Oswaldo Cruz.
Branco, rosto corado, fanhoso, era querido e respeitado pela clientela. Alguns
diagnósticos ele dava só examinando a língua, os olhos e a tonalidade da pele.
Creio que acertava em cheio, porque eu, menina, só ouvia elogios à eficiência do
bom doutor.
Ótimos
médicos prestaram os seus serviços a Itabuna naqueles tempos difíceis de
atentados à vida, epidemias e doenças várias que assolavam a população. A
cidade pode se orgulhar de seus médicos, que dignificaram e enobreceram a
profissão, no presente e no passado.
Além do
tratamento médico, havia a medicina caseira, muito aplicada. Esta, muitas
vezes, era para as crianças um terror. Se o menino não queria comer, andava
pálido, sem apetite, a primeira providência era chamar a rezadeira. Podia ser
“olhado”. Esta era convocada e já chegava trazendo seus ramos de arruda ou
pinhão-roxo. Ainda vejo nitidamente as figuras de dona Maria e dona Bertolina,
muito procuradas e acreditadas. Feita a reza, às vezes uma só não bastava, eram
três ao todo, aguardava-se a melhora. Se a falta de apetite continuava era
sinal de vermes, as lombrigas. A sorte da criança estava lançada. Eu, no caso,
entrava em clima de terror, porque sabia não ia demorar muito meu pai chegar em
casa com o vidro de “Lombrigol”. A data era marcada: no minguante ou lua nova,
caso contrário os vermes não morriam. Era um óleo grosso, intragável, de cheiro
repugnante. No dia escolhido eu era acordada bem cedo, ainda no lusco-fusco. A
cena que meus olhos viam, metia medo; minha mãe, de pé, com o vidro de remédio
numa mão e a colher na outra, e meu pai ao lado, para dar reforço. Eu fazia
horrores, chorava, trancava a boca, até por fim ser dominada e obrigada a
engolir a colherada da droga. Depois disso vinha o resguardo: trancada no
quarto o dia inteiro, sem ver a luz do sol e nenhuma cor verde. Se ocorresse
olhar uma planta ou a claridade do sol, as lombrigas não morriam. A alimentação
era bem fraca: chá preto e torradas para enfraquecer os vermes. No segundo dia,
podia comer umas mantinhas de carne grelhada, com arroz, quase sem sal.
O óleo de
rícino era outro pavor da meninada. Não sei por que muito usado naqueles
tempos. Se uma comida fazia mal, tinha um problema digestivo, se curava com
chás. Se persistia o problema, não havia dúvida, entrava em cena o óleo de
rícino. Era outro desespero. Minha mãe amenizava a minha angústia
convencendo-me a segurar uma chave na mão – ajudava a não sentir o gosto do
remédio, me dizia ela -, enquanto com a outra mão segurava uma banda de laranja,
para chupar assim que engolisse o óleo grosso de cheiro repugnante que descia
pela minha garganta.
Nos casos
de gripe forte, o remédio era um chá de sena com maná, comprado na farmácia. Era
tomado frio, e tinha gosto intragável. Se aparecia o sarampo, para o tratamento
buscava-se a flor do sabugueiro. Havia grande variedade de folhas para chás e
para banhos, indicadas nos mais diversos males.
Um tratamento
muito usado era a “Emulsão de Scott”. Creio que toda criança de Itabuna, da
minha geração, a conheceu; era indispensável
se tinha tosse ou após uma gripe. Muitos a tomavam para ajudar no crescimento. Se
a criança andava magra ou anêmica, o remédio era “Capivarol”.
Antigamente
o resguardo era fator importante para consolidar a cura de qualquer enfermidade;
para a parturiente, então, ele era importantíssimo: sete dias no quarto em
repouso, pés calçados com meias de lã para evitar friagem, e algodão nos
ouvidos para não ouvir barulho; alguém da família vinha para tomar conta da
casa: a mãe, a tia, a irmã, e, em último caso, uma comadre. Para a alimentação
da parturiente só canja de galinha nova ou frango. Tudo o mais era vetado.
Verduras que davam em ramagens, como o maxixe e a abóbora, eram considerados
veneno. Limonada, nem falar. Peixe de couro era proibido; peru ou pato só podia
comer um ano depois da criança nascida. Era com todas essas precauções que as
senhoras enfrentavam os nascimentos de cinco, oito, doze, quinze filhos. Como não
havia hospital nem maternidade, os partos eram feitos em casa, geralmente por
parteiras eficientes pela prática e dedicadas pelos cuidados. Itabuna teve boas
parteiras como dona Joventina, dona Glicéria, dona Guilhermina, e mais tarde,
as diplomadas dona Otaciana, Olga Couto, e dono Júlia.
O pior
tratamento a que uma criança era submetida era o dentário. Não havia dentista
só para crianças, como hoje. Quando se entrava num gabinete dentário, a
primeira coisa que se via era um armário de vidro, e, nas prateleiras, bem
arrumada, a exposição da aparelhagem toda, instrumentos que pareciam de tortura,
agressivamente à vista. O meu drama começava logo que olhava para eles. Era assustador;
desatava a chorar e a tremer. Assim, quando sabia que seria levada ao dentista,
a minha primeira reação era esconder os sapatos; até que fossem encontrados, já
tinha passado o horário, e assim, ia me safando daquela ameaça e da dor. Em casa,
quando eu tinha dor de dentes, esta era aliviada com a “Cera do Dr. Lustosa”,
então muito usada.
Na minha infância,
um dos cuidados que as mães tinham com os filhos, era a proteção contra o “vento
sul” que, conforme eu ouvia falar, causava doenças. Quantas vezes eu estava
brincando fora de casa, quando chegava a ordem: “entre; o vento sul está
soprando, ele trás doenças“. – Que vento era aquele que minha mãe tanto temia? De
onde vinha? Muito mais tarde fiquei sabendo que era o vento frio que soprava do
Sul, vindo das matas próximas, carregado de umidade; como a cidade era mais
aquecida, ele provocava uma queda repentina de temperatura e isso causava
gripe, resfriado, alergias, etc.
Sob os
aspectos da saúde, as crianças de hoje são muito mais felizes do que as de anos
atrás, porque desconhecem o pavor do consultório dentário que eu conheci,
desconhecem as regras draconianas da medicina caseira, o cheiro e gosto
horríveis da sena, do óleo de rícino e do “lombrigol”.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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