De vez em quando, sempre que possível, eu fugia do olhar atento de minha mãe e corria para a casa dos vidros azuis. Ela me fascinava. Tinha eu então uns seis anos, e minha mãe não entendia por que eu gostava tanto daquele casarão. Sempre que corria para lá, na volta era ameaçada de receber umas chineladas, mas nada me fazia desistir daquelas visitas.
Situado
bem perto da minha casa, numa esquina de frente para o rio, o casarão tinha cor
amarelo-queimado e se apoiava sobre enorme porão, todo acimentado e muito
limpo. Cercado de pequeno jardim, onde gerânios de cheiro exótico e cor
avermelhada cresciam, tinha de frente ampla sacada, janelas laterais e um alto
portão de ferro que lhe servia de entrada. Transposto este, estava uma escadaria
de poucos degraus, larga, feita de cimento polido, que dava acesso a uma maciça
porta de madeira entalhada. Em sua frente alongava-se uma rua ainda não
calçada, onde um gramado – não digo verdejante, porque a sua cor era sempre
meio parda – a cobria como um tapete empoeirado. Do outro lado do gramado,
estava o rio que gritava e ria pelas vozes das lavadeiras e aguadeiros que
labutavam nas suas margens. Mas quando a escuridão da noite se aproximava e
eles se iam, apenas o leve rumor das águas se fazia ouvir, e uma tristeza
dolorida aquietava tudo. Era esse o cenário que os meus olhos de criança
descortinavam, e a impressão que se gravava no meu espírito.
Transpor a
porta do casarão, visitá-lo, era o meu encantamento. Por isso o procurava sempre
que podia. Lá dentro, duas salas grandes, com assoalhos de bonitas tábuas de
madeira-de-lei, amarelas umas, outras escuras, dispostas em tiras lustrosas e
bem tratadas, me atraíam. Era ali o meu palácio encantado. Já no portão, o
perfume diferente dos gerânios me convidava a entrar num mundo também
diferente, e eu entrava de mansinho, sem me anunciar e sem ser convidada.
Simplesmente entrava.
Lá dentro,
uma tranquilidade. A brisa amena vinda do rio, espaços grandes quase vazios de
móveis, e o casal de velhos. Velhos aos
meus olhos de criança, pois estariam beirando os quarenta e poucos anos. A dona
da casa, amiga de minha mãe, olhava para mim, sorria e me deixava à vontade.
Parecia que ela já adivinhara o motivo de minhas visitas. Eu nada dizia, nem
procurava, apenas me encaminhava a uma grande sala cujos janelões eram
adornados por lindos vidros de cor azul-anil. Ali estava toda a razão do meu
encantamento.
Era aquele
o meu mundo encantado. O sol da manhã, que se refletia direto nas vidraças,
espalhava uma luz que eu achava maravilhosa, azul forte, que se estendia pelas
paredes e assoalhos. O salão com apenas algumas cadeiras e uma pequena mesa de
centro, todo iluminado de azul-anil, me envolvia numa magia tão grande que eu
quedava feliz, fascinada, dentro de um palácio lindíssimo. Princesas e
príncipes das histórias que as empregadas me contavam, carruagens de ouro e
prata surgiam e desfilavam ante os meus olhos cheios de alegria. Via arcas
cheias de pedras preciosas de Ali Babá, reluzindo no meio do grande salão.
Como não
havia crianças na casa, e não tendo com quem brincar ou participar daquela
maravilha, depois de pouco tempo eu deixava o casarão tão sem-cerimônia como
entrara, e voltava correndo para casa, já esperando o carão de minha mãe por
andar em casa de vizinhos. Como iria ela entender os motivos da minha atração
pela casa dos vidros azuis?
Os anos
passaram. O meu encantamento pelo casarão
foi se desvanecendo como a nuvem que se desmancha no espaço. Cresci, fui
para longe, mas a lembrança carreguei
comigo. Voltei anos depois , para encontrar desolação. Chuvas de muitos
invernos lavaram as suas paredes já mudadas de cor pelo tempo e gosto dos
diversos moradores que lá habitaram. Meio arruinado, vazio e silencioso, reboco
caindo, vidraças quebradas, despertou-me tristeza. O velho portão de ferro
ainda de pé, outrora tão bordado nos seus arabescos que mãos de artistas
forjaram, parecendo agora um espectro corroído pela ferrugem, teimava
inutilmente em cumprir o seu fado de guardião e protetor. Dos vidros azuis das
janelas, poucos restavam.
Triste e
curiosa eu me perguntava: Que mal fez o meu casarão ao tempo para que o
atacasse tão cruelmente? O que aconteceu durante o nosso longo afastamento? As
tábuas do chão ainda seriam as mesmas, de duas cores e lustrosas? E os
gerânios, o que foi feito deles? Tudo estava tão diferente... O gramado da rua
fora substituído por paralelepípedos. Só o rio parecia o mesmo, ou melhor,
quase o mesmo, porque estava calado, já sem os cantares das lavadeiras e os
gritos dos aguadeiros.
Quis
adentrar o velho portão, mas eu também tinha mudado, já não era mais aquela
criança que outrora entrava sem pedir licença e saía sem se despedir. Porém,
que interesse tinha mais para mim a velha casa, se os seus vitrais já não
refletiam o azul que encantou a minha infância, e se o meu palácio de sonho não
mais existia? O meu velho casarão parecia agora estampar a figura de um mártir
coberto de chagas, flagelado, agonizante, numa dor silenciosa. Os vitrais azuis
estraçalhados eram testemunhas mudas daquela decadência. Novamente lhe disse
adeus e parti.
Novos
verões e novos invernos vieram. O progresso chegou envolvendo ruas, avenidas,
casas, costumes e tradições, e com ele lá se foi embora o meu velho casarão. Da
última vez que o busquei, já não o encontrei. Em seu lugar erguia-se um
edifício de apartamentos, moderno, todo fechado, sem vidros coloridos, sem
portão de arabescos bordados, sem jardim de gerânios.
Sem a
beleza serena e nobre do meu lindo casarão e, sobretudo, sem a poesia dos
lindos vidros azuis iluminados pelo sol.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna/Ba.
Professora de Geografia lecionou muitos anos nos colégios Divina Providência,
Ação Fraternal e Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela
Faculdade de Filosofia de Itabuna, exerceu o cargo de Secretária de Educação e
Cultura do Município.
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