O Telefone
Artur Azevedo
Isso
passou-se nos últimos tempos do segundo império:
O Chagas,
moço de vinte e cinco anos, amanuense numa secretaria de estado, era tímido, o
que, aliás, não o impediu de
corresponder prontamente aos olhares libidinosos que certa noite – por
sinal que era domingo – lhe atirou de um camarote, no Recreio Dramático, uma bonita
mulher, um pouco mais velha que ele, acompanhada pelo marido, muito mais velho
que ambos.
Este
parecia interessado pelo espetáculo: tinha os olhos pregados no palco, sem
desconfiar nem de leve que a sua cara metade namorava escandalosamente às suas
barbas, um jovem espectador da plateia.
Depois de
castigado o vício e premiada a virtude, o Chagas acompanhou, a certa distância
o casal, até o largo de São Francisco e, apesar de tímido teve coragem de
sentar ao lado da senhora.
Dali até
São Cristóvão, como não se pudessem falar, entenderam-se ambos, a princípio com
os cotovelos e joelhos, depois com os pés e afinal com as próprias mãos, que se
apertaram furtivamente, quando, nas alturas do canal do Mangue, o marido deixou
de fazer considerações críticas sobre o dramalhão que ouvira, e começou a
cochilar, como todos os maridos confiantes.
Alguns
metros antes de chegar ao domicílio conjugal, ela preveniu o Chagas com uma
joelhada mais enérgica e, voltando-se para o sonolento, disse-lhe:
- Acorda,
Barroso, que estamos quase!
Apearam-se, e o Chagas tomou nota do número da casa.
No dia
seguinte, o ditoso mancebo olhou todas as informações desejáveis. O Barroso era
um honrado negociante, estabelecido perto do Mercado; saía de casa às seis da
manhã e só voltava à noitinha – o que facilitou ao Chagas os meios de escrever
a Clorinda, que assim se chamava a bela.
Pediu-lhe
uma entrevista, e escusado é dizer que ela não opôs a esse pedido a menor
resistência; exigiu apenas depois do primeiro encontro, que os outros se
efetuassem longe do bairro, e que o Chagas a esperasse no campo de São
Cristóvão, dentro de um carro fechado. Este os transportaria para um retiro
longínquo e discreto.
O
venturoso amante em pouco tempo se convenceu de que as mulheres mais caras são
justamente as que se dão de graça. Os seus magros cobres de amanuense não
chegavam para aquele carro escandalosamente misterioso e para o hotel com duas
entradas, onde se escondiam aqueles amores ignóbeis. O pobre rapaz recorreu ao
prego e ao usurário: encalacrou-se deveres.
Demais, o
namorado estragou o funcionário. Como estivesse profundamente impressionado por
Clorinda, e não pensasse noutra coisa que não fosse ela, e só dela, o amanuense
começou a meter os pés pelas mãos, errando os trabalhos mais insignificantes
que lhe confiavam, tornando-se incapaz até de extrair uma simples cópia.
Junte-se a
isso a circunstância de faltar pelo menos uma vez por semana à repartição – nos
dias em que, metido no carro, suando por todos os poros, trêmulo de impaciência
e com o coração aos saltos, esperava que ela entrasse também, para voarem ambos
ao miserável ninho das suas
poucas-vergonhas.
Algumas
vezes Clorinda faltava à entrevista, porque uma circunstância qualquer a
impedia de sair de casa. Nessas ocasiões o Chagas passava por tormentos
incríveis.
- Ainda
nada, ó Maciel? – perguntava de vez em quando ao cocheiro, sempre o mesmo, que
o servia naquelas arriscadas aventuras, homem já maduro, pai de filhos, e tão
discreto que não encarava Clorinda quando esta apontava ao longe e vinha na
direção do carro, protegida pela sombrinha e pelo véu, arregaçando a saia com
muita elegância, e apressando os passinhos miúdos, lépida, saltitante como se
houvesse saído de casa para boa coisa.
- Nada!
Mas, desde
que a via, o cocheiro voltava-se para o Chagas e o avisava:
- Agora!
E o Chagas
esperava-a com a portinhola entreaberta.
Um dia Clorinda deu-lhe uma notícia
desagradável: o marido tinha mandado colocar em casa um aparelho telefônico.
- É um
perigo – observou ela – mas por outro lado é bom, porque posso falar-te
quando estiveres na secretaria. Vocês
têm lá telefone?
-
Naturalmente.
Poucos
dias depois estava o Chagas, sentado à sua mesa de amanuense, copiando pela
terceira vez um aviso, quando se aproximou dele um contínuo e lhe disse:
- O Sr.
Ministro chama-o.
- A Mim?!
- Sim,
senhor.
- Ora essa! Você não está
enganado?...
- Não,
senhor. S. Excelência me perguntou: - Há aqui na casa algum empregado chamado
Chagas?
- Respondi
que sim, e ele disse-me: Pois vá chamá-lo.
- Que
diabo será? – perguntou o amanuense aos seus botões.
E foi para
o gabinete do ministro.
Tremia que
nem varas verdes.
O
conselheiro, homem enfatuado e rebarbativo, estava sentado à secretaria, com
as barbas metidas numa papelada que o absorvia.
- Estou às
ordens de V. Ex.ª – gaguejou o Chagas.
Não teve
resposta.
Dois
minutos depois repetiu:
Estou às
ordens de V. Exc.ª
S. Ex.ª
sem se dignar erguer os olhos, perguntou em tom áspero:
- É o
Chagas?
- Sim
senhor.
- Estão o
chamando no telefone.
E, sempre
de olhos baixos, e carrancudo, apontou para o telefone, que ficava a alguns
passos de distância, e fazia ouvir o seu
impertinente e desrespeitoso tlin-tlin-tlin.
O Chagas
sentiu falar-lhe o chão debaixo dos pés; entretanto, conseguiu aproximar-se do
aparelho, e dizer engasgado pela emoção:
- Alô!
Alô!
- Quem
fala?
- É o
amanuense Chagas.
- Ah! Bom! Sou eu, a tua Clorinda. Quem
foi o sujeito que falou antes de ti? É um malcriado! Então? Não respondes?
- Não sei.
- Ele
disse que era o ministro.
- Era. Que
deseja a senhora?
- Por que
me tratas por senhora?
- Não
posso dizer nesse momento.
- Por quê?
- Por...
por nada... Estou muito ocupado... A ocasião é imprópria...
- Já não
me amas?
- Sim!
- Como
sim? Já não me amas?
- Não...
isto é, não posso... Diga o que deseja.
- Estás
zangado comigo?
- Não.
- Então
dize: não estou zangado e amo-te!
- Isso não
posso. Depois explicarei por quê.
- Não vás
amanhã: o Barroso faz anos e janta em casa... eu não me lembrava... mas dize ao
menos que ainda me amas!
- Não
posso agora.
- Por quê?
- Depois
saberá.
O
ministro, sem levantar os olhos da papelada:
- Veja se
acaba com isso, meu caro senhor; quero trabalhar!
O Chagas
estremeceu, largou das mãos o telefone, que ficou pendurado, e saiu do gabinete
fazendo muitas mesuras.
O
conselheiro ergueu-se para desligar o aparelho, mas levou o fone ao ouvido e
ainda ouviu:
- Que
modos são esses? Nunca me tratastes assim! Já não me amas! E eu que por tua
causa enganei o meu pobre marido! Está tudo acabado entre nós!...
- Tenha
juízo, senhora! – bradou o ministro com a sua bela voz parlamentar.
E desligou
o aparelho, sem suspeitar que ao mesmo tempo desligava dois amantes.
............
Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo),
jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e
faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do
irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde
criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
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