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sexta-feira, 18 de março de 2022

BLACK – Artur Azevedo


 

            Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São Cristóvão, frequentava a casa do senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro.

            Mas, por uma irregularidade notável, tão notável que a vizinhança logo notou. Leandrinho só ia à casa do Senhor Martins quando o Senhor Martins não estava em casa.

            Esperava que ele saísse e tomasse o bonde que o transportava à cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no corredor com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e Dona Candinha (assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava o tálamo aviltado pelos seus amores ignóbeis.

            A ventura de Leandrinho tinha um único senão: havia na casa um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho.

            Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignação que tamanha patifaria lhe causava.

            Entretanto, o inconveniente foi remediado. A poder de carícias e pães-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebê-lo à porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltando-lhe às penas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda inquieta e curva.

            As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximação do perigo; por isso, Dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse relações de amizade com o Senhor Martins.

            Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresentá-lo ao marido.

            Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestação da simpatia do Senhor Martins não se demorou tanto como a de Black: foi fulminante.

            Os maridos são por via de regra menos desconfiados que os bull-terriers.

            O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tão simpático, tão bem-educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam dois velhos amigos.

             À saída do clube, Leandrinho deu o braço a Dona Candinha, e, como “também morava para aqueles lados”, acompanhou o casal até a rua do Pau-Ferro.

            Separaram-se à porta de casa.

           O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a sua visita. Jantavam às cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear.

            - Hei de aparecer – prometeu Leandrinho.

            - Olhe, venha quarta-feira – disse o Senhor Martins. – Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns amigos à mesa, poucos, muito poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos-á muito prazer.

            - Não faltarei – protestou Leandrinho.

            E despediu-se.

            - É muito simpático – observou o Senhor Martins metendo a chave no trinco.

            - É – murmurou secamente Dona Candinha.

            Black, que os farejava, esperava-os lá dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

 

            Na quarta-feira aprazida Leandrinho embonecou-se todo e foi à casa do Senhor Martins, levando consigo um soberbo rama de violetas.

            O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresenta-lo às pessoas presentes, quando Black veio a correr lá de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém-chegado, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

            O Senhor Martins, que conhecia o cão e sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma ideia sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situação ficou para ele perfeitamente esclarecida.

            Não se descreve o escândalo produzido pela inocente indiscrição de Black. Basta dizer que, a despeito a intervenção dos parentes e amigos ali reunidos, Dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés valentemente aplicados.

            O Senhor Martins, que não tinha filhos, a princípio sofreu muito, mas afinal habituou-se à solidão.

            Nem era esta assim tão grande, pois, todas as vezes que ele entrava em casa, vinha recebê-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda inquieta e curva.

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.


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