Museu Guardador de Amores Fugazes
Cyro de Mattos*
Só a arte da
palavra pode operar o milagre de fazer renascer o que se foi, dolorosamente.
Com a poesia marcada de versos no reverso, sem evasivas românticas, é capaz de
revelar a alma invisível nas rupturas drásticas dos seres e das coisas para que
seja visto o quanto cada um de nós é um ser do tempo, que não muda, e dessa
forma mudamos nós, na travessia dos amores fugitivos que acontecem submissos a
certo senhor soberano. Indiferente é
como esse cavaleiro no galope absoluto tudo dá e toma. E ela, a poesia, leal amada necessária, luz e
bálsamo, então acontece com todos os bemóis do sentimento para acender a alma
lírica, com suas tonalidades humanas e sons do coração batendo em dó, e
acorda-nos nos apelos de tanto estarmos na ânsia do amor, e nos socorre e
ilumina nas zonas obscuras de tudo que guardamos.
Esse museu de
emoções, que Raimundo Gadelha compôs com versos críticos na lembrança,
confinados em áspera travessia e nos cômodos ´com os elementos de tempos
temerários, reflete a alma tantas vezes sofrida do seu criador. Nesse museu de
emoções, que agora se abre para visões e revisões dolorosas da vida, o
visitante fica sabendo como nele é que escutamos o quanto cada um de nós conta
pelos cantos o seu tanto, suas verdades que entristecem a passagem dos anos no
soluço.
O nordestinado
Raimundo Gadelha, radicado há anos em São Paulo, onde desenvolve suas aptidões
como editor de livros de literatura, no seu trânsito por ruas e campos de
solidão trouxe os quadros necessários para habitar esse museu banhado de gritos
em tudo que expõe. Não é um museu composto de quadros exóticos, fotografias
curiosas, mas constituído de emoções que atormentam na cobrança do custo alto
pela visita, expõe em salas povoadas de duras recordações o sal dos sonhos em
que se banha por entre paralelos e meridianos do existir.
É inconteste que a geografia e as emoções
tão intensamente vividas no Nordeste
transformaram-se em afetivos elos
que carrego com orgulho por todos esses anos...
Nesse
museu, de pungente lirismo, com versos densos armados com o ritmo da saudade
incandescente, ciente do que fala seu guardador ressalta que “a família é
sempre/ lenta desintegração de nós mesmos.” E nos apresenta, na viagem
imaginária que se cruza com o real, lugares que vão ficando para trás. O
visitante em pouco tempo toma conhecimento que as vozes do pai do dono do museu
desdenhavam das regiões fora do mapa de sua afetividade enraizada no agreste do
sertão, do exterior nem queria que falassem. Em sua inquieta passagem por uma
paisagem particular, elencada de relações profundas com a vida, ordenava que se
pusesse nela os anúncios de empoeiradas estradas avistadas da boleia de um
caminhão.
Vínculos e
dilacerações, inquietações de natureza grave mostram como a vida é aqui insone,
não se compraz com o romantismo que simula o real tecido e acontecido nas
desilusões. Há no autor poeta desse museu, assim imerso em tempo, vida e
solidão, certa unidade de corpo
viajante gotejado de suor e alma inteirada de verdades, crenças e desvivências,
que emergem sem máscaras de um mundo agudo com as impressões fincadas na
saudade, que por sua vez se amolda ao som e à fúria de uma poética que fere e não
cura, como se fosse só tristeza batendo no tambor da excursão que deixou tudo
para trás. Noutro lance, o visitante, leia-se leitor, também vê pendurado no
armário do velho guarda-roupa o vestido que o dono do museu distante enviou
para a mãe no Natal. Doeu-lhe a oferenda. Era estranho imaginar como a mãe
ficou no Natal no vestido que nunca viu e que nem mesmo sabia a cor, com o seu
dinheiro foi a irmã que o comprou.
Em “Cigano”,
poema como de resto escrito com a alquimia sensitiva do verbo que nos une aos
sonhos, o visitante tem a oportunidade de constatar que o arquiteto desse museu
por entre solidões imaginadas e a realidade dura que se esvai nos anos está
partido em dois como um ser ambulante do tempo que em tudo permanece.
Um é o ser que se foi e hoje é só memória
e este outro presente e preso,
a todo instante ao passado estanque
vislumbrando o obscuro futuro.
Todos os seus
propósitos guardados na nostalgia como alento, o poeta Raimundo Gadelha,
guardador de tristezas e tormentos, na miragem reinventa. Coisas com o respiro da memória, seres que
não descansam na formação de ideais, expectantes esperanças dissolvidas nos
sentidos, intuições na alma como simulações perfeitas, capas espessas nas
camadas com achados certeiros, tudo isso nesse museu com as suas vozes
debatendo-se na paixão como se fosse “centopeia de abismos grafados no
espelho”. Visível assim nesse museu com suas circunstâncias vitais o mundo
fugaz surge transformado em ausências, solidões que adormecem sem carinho.
Beijos na memória acendem o coração no esquecimento do viver, tudo que em
verdade se foi, e possivelmente será.
Num instante a tarde se vai e vem a certeza
de que o mundo que existe lá fora encolheu.
Triste faço da casa museu de mim mesmo
e nele coloco pedaços do que fui
para melhor entender quem sou.
Com esses
versos afixados na parede de uma das galerias, o visitante percebe, em sua
passagem por tantas miradas do sofrer, que viver é como morrer a cada instante,
tudo se resume nesse vento que passou aqui e logo desapareceu no mistério com a
dureza das ausências. O que foi, o que é, o que será esvaem-se nas horas com a
duração de um mesmo instante. A propósito é preciso uma explicação a essa
altura da visita. Não se espere, numa
visita de ausência e nostalgia, um museu com o tempo habitado de
ternuras na cadência generosa da vida, pois não terá êxito o visitante, se
vozes, sons e cores foram diluídos com pesares onde viveu a esperança. Os
gritos que permanecem como mudos gemidos no tempo-espaço ecoam no salão onde
foi erguido o sonho impossível em transe, como nuvens manchadas de sentimentos
delirantes, atormentados, que dissimulando feridas fazem chover os dias como
dores incansáveis.
De fato,
esse museu não está estagnado, é um espaço onde se cabem outras porções de
poesia, fazendo-nos pensar. Através de fortes desenhos da vida, expressa todo o
peso terrestre do que está escurecido nos porões e nos desvios com as horas
intranquilas. Nesse aspecto, o peso que ele traz com o seu luto faz com que o
visitante encontre por trás de negras camadas espessas de solidão o que existiu
outrora na brancura. Por isso esse museu que revela agruras agudas com a
palavra fervorosa veste-se também na roupagem dos desenhos de outro poeta, dono
de um timbre impregnado de tristeza, discurso sustentado por solidões
solidárias, sensibilidade apurada que ressoa na beleza das letras brasileiras.
As ilustrações de Álvaro Alves de Faria, agora como poeta do desenho, permitem
adivinhar que há nesse museu a noite de estrelas apagadas, o dia ausente de
amores, que assim se cobriu com um sol de feição obscura. Um sol que não mais
pinta os desertos com as cores do mundo iluminado. Empretecido, tudo nele é
como fuga, que faz sumir ternuras, num só tempo é sem afagos quando os seus
raios deviam ser o amanhecer em vento ameno para cobrir os seres e as coisas
com a sua flor enorme.
A vida
refugiou-se na memória que faz pulsar o coração desse museu. Apresenta-se
vestida com a túnica versátil dos rumores encobertos por essas ilustrações
imersas no negrume silente do seu forte simbolismo, destacando que ele possui
uma alma que resvala no espelho oculto: com suas considerações e pulsações de
tudo que serve de alimento da alma não brilha de alegria, embora enriqueça a
parte noturna do que somos. Pode até ser dolorosa a mensagem que se encontra
nesse museu do poeta Raimundo Gadelha, revestido com as figuras obscuras
manchadas de saudade e solidão nos desenhos pesados de Álvaro Alves de Faria,
mas quem nele adentra não pode deixar de considerar as surpresas produzidas por
grave poesia, temperada com adeuses soprados com os ventos da angústia. Fica o proveito em quem o visita e sabe que
sem esses ventos, versos viáveis nos amores tantos, apesar de doloridos, não há
o sentido que queremos ter da existência.
Não se logra
respirar circunstâncias vitais que se juntam e apontam para estes bramidos
constantes, de dúvidas e silêncios, enredos em subterrânea melancolia do tempo
migrado para o que fica guardado em nossos anos de pesar. No condicional
possível que come os desejos, no colosso obsessivo da certeza de que todos
somos um, pleno de incompletudes e contradições, nos diálogos frequentes com a
vida movimentada no caos ordenado por estrofes amalgamadas de solidões, entre
sonhos e abismos.
*Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta. Membro da
Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de
Santa Cruz (Bahia)
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