Conterrânea
Heloísa Prazeres, bom dia.
Atendendo seu pedido, assisti ontem
à noite sua palestra em parceria com o professor Aleilton Fonseca sobre o tema
agoridade, o tempo e a escrita. Bem instrutiva. Você me pede que eu diga alguma
coisa sobre a atuação dos dois doutores. Só não me coloque em condição que eu
não sou quando carinhosamente me chama de mestre. Mestre era Jesus, o bem-amado
salvador da humanidade, que não tinha biblioteca, mas tudo
sabia sobre o caminho e a verdade, permita-me. O seu chamamento
de mestre não me cabe, fica por conta da generosidade.
Constato que estou como vínculo de gravidade
inserido na agoridade dos tempos eletrônicos. Sincronizado ou submisso, travado
pelos dias velozes no que fui como um leitor curioso e voraz de autores
fantásticos. O tempo, como romanceia o
genial William Faulkner, não perdoa. Há muito passei a ser sabedor que não
muda, nós é que mudamos. Assim, a contragosto, por mais que eu tenha
tantas explicações, do princípio ao fim nada sei de mim, nessa viagem
caudalosa, pontuada de mistério. Nessa
caminhada por camadas espessas de sombras, que me justapõem por caminhos que se
bifurcam, tornados círculos metafísicos como rios que se repetem em busca do
que não tem resposta, como nos fala Borges em suas maravilhosas ficções, aquele
homem que ficou cego, mas que valia por toda uma literatura, como se refere
Infante Cabrera.
Cada vez mais estou sabendo que saímos de
cena como entramos, despidos de tudo, vestidos no inexorável, nada se
fazendo até agora para abrir a porteira com a clarividência e se adentrar no
lado de lá. Ser ou não ser, eis a questão. Dou-me conta então que os gregos e
seus deuses, a Bíblia, Shakespeare e Cervantes são quatro pilastras gigantescas
de nossa evolução cultural, inauguram novos sentidos da vida. Mas quem inaugura
o personagem na História é o criador do Quixote, bom não esquecer, como o
antropólogo Muniz Sodré observa com conhecimento de causa.
Depois de duas guerras mundiais, que
abalaram os fundamentos do mundo, aconteceu o personagem crítico com a fixação
do mal, um discurso de anti-herói em tempo de conflito mesclado com depressões
e pessimismo. Com o seu dizer que põe a razão no abismo, sem escape, travado
pelo cerco do absurdo indicado por Kafka. Acontece que depois da revolução
industrial, este ser que tudo quer, nada lhe satisfaz, mas ainda tanto se
desconhece, que se apresenta como homem ou algo que valha com o nome de homem,
inventou essa nossa vida recheada de meios eletrônicos. Estou no trânsito da vida como um ser eletrônico, atônito
e pasmo. Tudo é rápido, esgota num abrir e fechar de olho, aqui como acolá,
expande-se e volta para a tela da agoridade.
Nessa circunstância crítica do
que sou nesse momento, sincronizado com a agoridade ou vivente com a diáspora
dos meios eletrônicos, nada impede que eu escreva os meus pequenos
poemas, como esse a seguir chamado de Dunas: “Considero que o
silêncio/reencontra-me no imenso/e me ilumina em solidão.” Preciso dizer que
estou sendo influenciado por Ungaretti? São jeitos da tão discutida agoridade,
um autor ser puxado pelo grande.
Com quase 83 anos, evidente que o tempo vai
ficando curto. Preciso selecionar. Agrava o caso alguns abalos na saúde, o que
é próprio da idade avançada. A mente continua saudável, daí continuar
escrevendo e publicando, coisas de ontem e hoje como se na escrita da agoridade
falassem. Você, minha conterrânea, e o professor Aleilton deram uma aula bem-sucedida
sobre o tema agoridade, o tempo e a escrita. Uma exposição eficaz que fez
com que eu despertasse sobre a problemática do assunto, como merece, daí
agradecer aos dois doutores sobre a acuidade mental com base em
instrumental teórico suficiente com que enfrentaram o desafio do assunto.
Cronos não
muda, é o mesmo, mudamos nós, que nos perdemos no viver de cada instante que se
vai. Com tanta velocidade, meios eletrônicos que fazem o longe ser perto, a
extensão ter compreensão instantânea, tudo ficou relativo. Os seres e
coisas postos no mundo para que sejam alcançados são assim detectados, às vezes
com proveito, outras horas com desperdício na enxurrada visual das mensagens,
mas fica evidente que, graças a Deus, ainda não conseguiram abolir o sonho.
Como diz o enorme Fernando Pessoa, aquele
que elegeu os heterônimos, substituindo o eu lírico pelas versões filosóficas
do poético, “o que dói não é / o que está no coração, / mas essas coisas/ que
não existirão.”
Obrigado
Cyro
de Mattos
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*Cyro de Mattos é autor premiado no Brasil e exterior.
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