O menino Jorge Amado
Cyro de Mattos
Nos livros de ficção desse escritor popular percebe-se que o
narrador de linguagem fluente dá voz aos humilhados e ofendidos, ao povo do
candomblé, às gentes do cais, prostitutas, seresteiros, pescadores, operários,
poetas populares, meninos de rua. Com esse elenco de tipos populares fica
nítido que para ele é mais importante o conteúdo na trama, muitas vezes
interligada com humor, do que a palavra com a qual a vida é recriada.
Íntimo dos poetas populares, sua inspiração é dotada de um
lastro humanitário que se expressa através da esperança na mensagem, da
liberdade como o sentimento mais valoroso e o amor o mais forte. A
solidariedade se faz presente na sua obra, na escrita irreverente que se
transmite fascinante, tantas vezes sensual, mesclada com suas ondas de
indignação.
Aqueles que o conheceram sabem que ele tinha a amizade como
uma coisa nata. Dava-se conta por isso que existia ainda o homem
simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida o
artista vaidoso como o homem. O compromisso que sempre teve com as letras
foi o da verdade, honestidade, promoção do reconhecimento do valor no outro e a
defesa da liberdade de expressão. Daí ser reconhecido por justeza como um
legítimo romancista da vida, um poeta da prosa que encanta.
Detentor das mais belas páginas de nossas letras. De O
Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, retira-se essa passagem, com sabor e
saber que resultam de um criador que adota o simbolismo do amor como o
sentimento mais poderoso no caráter do homem e da mulher. Ele alude que o mundo
só tem graça e encanto quando se vive nele fora das prisões.
Qualquer escritor que se preze gostaria de assinar uma joia de versos
como essa, simbolizando o amor que a vida deve ter sem preconceitos e
dominações. Uma joia singela com brilho de verdade. O amor como eterna armadura sustentável na
leveza do ser, que não se cala e diz que a vida é bela, muita gente quer
vê-la com desprezo, sem dar o valor que ela merece.
Tal como acontece com O gato Malhado e a andorinha Sinhá,
depois que se acaba a leitura de A bola e o goleiro (1984), história escrita
para o público infantil, como para o adulto que ainda não deixou de ser
criança, certamente dirá, “uma pena, que um inventor de ingenuidades, com alma
tão infantil, leve, cheia de humor, dotada de surpresas e sustos coloridos, que
cativam e encantam, não tenha se dedicado mais à escrita de livros para os
leitores pequenos.”
Certo que a infância
tenha recebido tratamento importante ao longo da construção de seu legado
romanesco para o leitor crítico. Mas o que se lamenta, repito, é que no olhar
para o mundo com visões líricas e reflexões críticas para o leitor
generalizado, esse consagrado autor de uma soberba literatura adulta, rica de
imaginação e sentimento popular do mundo, não fizesse de seu ofício também um
recanto dedicado ao leitor infantil, amante da boa prosa e do verso engraçado,
e não se deixasse ficar como um bissexto autor para crianças.
Essas
considerações agora vêm a propósito de O goleiro e a bola uma beleza de texto
infantil, que tem o futebol, uma das paixões do povo brasileiro, como tema. Com maestria fina, sutilezas e manhas, Jorge
Amado escreve a história de amor entre a bola Fura-Redes e o goleiro Bilô-Bilô
Cerca-Frango, que não se cansava de tomar gol, por razões óbvias era
considerado o pior do mundo na posição. Até que um dia aconteceu o inesperado.
Amor à primeira vista entre Fura-Redes, o pavor dos goleiros, e Bilô-Bilô Mão
Podre.
Depois
chegou o dia de o Rei de Futebol fazer o gol milésimo da sua carreira, marca
que jamais seria alcançada por qualquer goleador. Todas as bolas se ofereceram
para ter a honra de ser a vítima do gol milésimo do Rei de Futebol. E o que
aconteceu?
Mudou Cerca-Frango de posição, fugindo rápido para o outro
lado. Fura-Redes fez o mesmo, a buscá-lo. Assim ficaram os dois durante alguns
minutos, um tempo enorme, correndo em frente às traves, de uma à outra, até
que, desesperado, Bilô-Bilô disparou campo afora deixando o arco à disposição
da bola. Mas Fura-Redes partiu atrás de seu goleiro e o perseguiu até que o
alcançou diante do arco do adversário e em seu peito se aninhou redondinha e
amorosa.
Como
terminou essa história futebolística entre a Bola Fura-Redes e o goleiro
Cerca-Frango, que foi o pior e o melhor de todos?
Se
casaram e viveram felizes para sempre.
Referência
AMADO, Jorge. O gato Malhado e a andorinha Sinhá, Record,
Rio de Janeiro, 1976.
-------- A bola e a rede, Record, Rio de Janeiro, 1984.
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*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É
também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca,
Rússia e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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