Desde a infância, Dante é meu fantasma. Quase de carne e
osso. Vibrátil. Tornou-se meu enigma e obsessão. Determinou parte de minhas
escolhas e de minhas recusas. Todos os anos volto ao Inferno, Purgatório e
Paraíso. Basta entrar uma vez, para nunca mais sair. Um labirinto de beleza.
A morte de Dante é celebrada, mundo afora, com pompa e
circunstância, em quase todas as línguas da Terra, para as quais foi traduzida
a Divina comédia. Setecentos anos de presença e juventude. Seu decassílabo
é fonte cristalina, pura dinâmica e inspiração. Como se Dante estivesse mais
vivo do que nunca. Não tanto pelo impulso motor que imprime direção aos cem
cantos da Comédia, mas pelo fulgor da poesia, no repertório das imagens,
na nitidez de seu olhar.
Os timbres novos e os acentos vários descerram uma viagem
audaz no mundo das almas. Terreno até então desconhecido, seu canto renova as
potências da linguagem. Severa, sublime, fulgurante. Leitura que produz uma
força de tração irresistível, a Terra e o Cosmos. Densidade brutal ou leve
transparência, segundo a cartografia dos três reinos. Obra que traduz um tempo
misto, ao longo da qual o antigo e o moderno se entrelaçam, liberdade e
erudição, matéria e sonho.
Quantos interrogam o mistério de Beatriz e buscam trazê-la
ao mundo em que vivemos, num gesto de adesão e profecia. A obra de Dante,
em certo e largo sentido, escapa ao controle do autor e da crítica. Tornou-se
uma grande metáfora, uma espécie de universo inflacionário. Vive além do
espaço-tempo, na longa viagem pelos séculos, entre algas e correntes de
leitores, cardumes incontáveis, quase infinitos.
Assim, num país como o Brasil, os olhos de Beatriz
confundem-se com os olhos de Diadorim. Nossa Divina comédia passa
através do sertão, de Euclides, Rosa e Suassuna. Não abandona a literatura de
cordel, os romances antigos, o alfabeto de vaqueiros e a linguagem armorial,
que rege a presente exposição.
A leitura passa pelo Barroco, em que se prolonga,
transfigurado, o tempo de Dante, nas igrejas coloniais, altares e torres
antigas, onde dobram os sinos de Ouro Preto, Salvador e Paraty. Chega à Semana
de Arte Moderna, com A divina increnca, e às escolas de samba.
Nossa abordagem dantesca possui leitores de águas claras:
Camões, Vieira e Pessoa. E desta suma trindade, outra se acrescenta, não menos
admirável: Murilo Mendes, Cabral e Drummond. E me permitam acrescentar: Jorge
de Lima e Joaquim Cardozo.
A política entra na corrente sanguínea da Divina
comédia. Escrita no exílio, o poeta criticou duramente o que lhe parecia
indigno, sem meias-palavras, papas e imperadores, leigos e padres. Defendeu a
separação entre poder temporal e poder espiritual.
A república e a poesia, tão caras ao poeta, não fogem ao
olhar de Beatriz. Na distopia, impõe-se pensar o bom lugar. Assim, a
transição do Inferno ao Paraíso reflete a crise de seu tempo. Sinal de quem se
rebela e sonha com uma nova ordem.
Estamos dentro da Divina comédia. Nessa metáfora de
vidros claros. Em sua translúcida beleza. Nela desenhamos parte de um
destino. Beatriz nos cumprimenta do futuro, até onde nossos olhos podem
alcançá-la.
Jornal de letras de Lisboa, 20/10/2021
Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
https://www.academia.org.br/artigos/dante-700
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário